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Foto do escritorValdemir Pires

26. Tempo e esperança (Tempo - Livro I)



Eu havia me proposto a escrever sobre “tempo e pandemia”, ou “tempo e curriculum”, ou “viagem no tempo”. Perguntei, então, a algumas pessoas em um grupo no Facebook, o que prefeririam ler primeiro. Enquanto “viagem no tempo” estava se revelando a opção preferida da maioria, Thereza[1] acrescentou a opção “tempo e afeto” e Ivone[2] disse:

– Estamos cansados desta pandemia...e ela vai longe ainda.... “Tempo de esperança” seria bom.

Senti nessas manifestações (resultado provisório da enquete e opiniões das queridas amigas e leitoras) um clamor único, por alento. Ah, viajar no tempo, fugir deste que estamos terrivelmente vivendo! Reencontrar os afetos nesse momento ao mesmo tempo de isolamento social por razões sanitárias e de descrença nas relações afetivas, destroçadas por divergências e mentiras. Resgatar a capacidade de ter esperança, tão reduzida por numerosos acontecimentos desesperadores, que se sucedem uns piores que outros.

Fui buscar a resposta da maneira mais corriqueira possível: no dicionário etimológico. A origem das palavras é sempre esclarecedora. O que devemos entender por esperança? Como ela vem sendo entendida desde que a palavra que a designa começou a ser usada?

Abri, incrivelmente, na página 223, em que se encontrava o verbete “espérance”, que informava: “s.f. Esperança. S.f.pl. Herança possível”. Fiquei intrigado por aparecer a palavra em francês e não em português. Verifiquei outros vocábulos, abaixo e acima: estavam todos em francês. Eu havia apanhado o dicionário errado, o de francês-português (comprado quando eu estava estudando Polemologia num Núcleo de Estudos Estratégicos) e não o etimológico, de quando, em Araras, o professor João Chagas me ensinava, de verdade e voluntariamente, português. Antes de buscar o dicionário certo, dei-me conta, a partir da descoberta no dicionário errado, de que a esperança é perigosa. No fundo, é melhor não depender dela: antes ter a comida na mesa, ou o amor nos braços, ou qualquer desejo atendido, do que esperá-los na dúvida sobre se chegarão ou não. Pensei isso por causa da expressão “herança possível”, do verbete francês. Viver de dádiva, de herança é viver esperando, esperando que algo chegue sem que busquemos, sem que façamos chegar. Esperança de mãos dadas com passividade, então.

Ao que consta (para quem crê), a única mulher que teve esperança de ter um filho sem antes engravidar foi Maria, a mãe de Jesus Cristo. Todas as demais mulheres que já existiram, para ter semelhante esperança (de gerar um ser humano e não um filho de Deus, claro), tiveram que tomar, juntamente com um homem, uma providência conhecida. Ou seja: a esperança que vale acalentar é aquela ativa, a esperança que fecunda. Ou a esperança que semeia: não consta que seja acertado esperar colher quando, antes, não se semeou. Entregar nas mãos de Deus? Bem, seria necessário ter certeza de que, primeiro, o sujeito passivo merece o que pede e, segundo, que o Sujeito ativo entende que o pedido é o melhor para o solicitante e também para os demais envolvidos (e sempre os há) e para as circunstâncias. A divindade talvez possa perguntar:

– Que é feito do livre arbítrio que lhe concedi? Por que raios você acha que estou aqui, o tempo todo, à sua disposição?

Mudando de chave, ainda que precariamente, da cristã para a budista, esperança, no sentido de expectativa por algo ou alguém, é a fonte do sofrimento: há que se abolir o eu que deseja o tempo todo, que se martiriza por não conseguir e que, ao conseguir, ato contínuo deseja outra coisa e assim sucessivamente, sem cessar... de sofrer. Assim não se chega ao Nirvana, mas ao PIA: poço infinito de ansiedade.

Mas, se ter esperança (passiva) é perigoso, não ter esperança (ativa) também é. Não se envolve com a semeadura e o cultivo, trabalhosos, quem não espera colher. Não há alma que resista a viver sem sonhos, nem sociedade que suporte abandonar a utopia.

E por falar em utopia, ela se confunde com o que bem poderíamos chamar de esperança coletiva. Aquela que é compartilhada por muitas pessoas, juntas. Ela é tão necessária para nós, considerados em conjunto (como Nação, dirão os mais afoitos), quanto as esperanças individuais ou familiares. Como, por exemplo, uma família poderia acalentar um bom emprego para os seus jovens, depois da formação deles, se não houvesse esperança coletiva de organização da sociedade de um modo em que isso fosse possível? Como não perder a esperança de que a justiça seja ministrada com sensibilidade e lisura, sempre que alguém tiver que recorrer ao Judiciário, se o modo como este poder opera se afasta da independência político-partidária dele esperada nos marcos da democracia? Como esperar políticas sociais adequadas e suficientes, para amparar as esperanças individuais dependentes de acesso a bens públicos, de um governo que trai os mais elementares fundamentos do Estado do bem-estar social?

Os grupos que nutrem esperança coletiva – um Estado do bem-estar-social, por exemplo – e se mantêm politicamente passivos, nutrem uma esperança coletiva que, ao não ser ativa, é tão perigosa como a esperança passiva individual da Maria José, que achou que teria um filho só porque em seu nome consta um homem.

A esperança coletiva é a utopia (que vem do nome da ilha bem-aventurada de Utopia, concebida por Thomas Morus (1478-1535) em “Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que entretedor, do melhor estado de uma república e da nova ilha Utopia”, de 1516. Esta esperança, urdida com os outros, em torno do que a todos afeta e interessa (daí Utopia ser uma república) é o guarda-chuva das esperanças individuais. Sem este guarda-chuva, as esperanças pessoais se molham e muitas derretem ou são levadas pela enxurrada.

Utopia não deve ser entendida como “o céu na Terra” e nem se deve imaginar que uma Utopia só possa existir num céu paradisíaco, pós-morte. Essas não são ideias a adotar quando se quer ter esperança, de fato, pois são visões extremas que desarmam a desejada esperança ativa (tanto a coletiva como as individuais). A primeira, rechaça o aqui-agora disponível pela sua insuficiência (aparentemente imutável) e a segunda idealiza algo que pode não passar de uma miragem no deserto da apatia política.

Viver com esperança é esperar a morte, como certeza final, mas não esperá-la como libertação de um mundo sem esperança; é esperar a morte plantando e colhendo, fecundando e parindo, dentro de nossas respectivas cabanas e castelos, interligadas entre si na cidade que nos é comum. O tempo das esperanças (individuais) e da Esperança (coletiva, Utopia) é o tempo que se vive em busca dos próprios desejos, não em harmonia, mas em conflito, sabiamente enfrentado, com os desejos dos outros. Esse tempo, fugidio, arredio, está sempre ali, a um passo, periclitantemente. O que se pode não é chegar a ele dando o passo final, mas somente caminhar, sempre, em sua direção, para evitar se torne totalmente inatingível. Mas isso já disse o cineasta Fernando Birri (1925-2107), e não o escritor Eduardo Galeano (1940-2015 ), como se costuma afirma, ao mostrar para que serve a utopia – para impulsionar: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos."

E o Dicionário Etimológico? Ah, diz que esperar é aguardar, confiar, ter esperanças e vem do latim sperare. Ih! Lá no dicionário etimológico, esperar é ter esperanças... Ruim. Porque ter esperanças não é esperar: é ir construindo, no individual e no coletivo, o que permite esperar com confiança, sempre de olho no que se vislumbra como melhor do que aquilo que está posto, dado ou imposto.

[1] Maria Thereza Miguel Perez, Piracicaba SP. [2] Ivone Ponesi, Araras SP.

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