Cada época é caracterizada por suas ideias e, como estas definem o raio de ação dos indivíduos, os homens são específicos de suas épocas, portando medos, sonhos, sentimentos e emoções que, fora de seu tempo de existência, nunca mais serão os mesmos.
Aceita-se tacitamente que algumas ideias e sentimentos caracterizaram e caracterizam as épocas que podem ser identificadas ao longo da História, algumas vezes indo além de regiões e países, alcançando continentes e até o mundo todo. Afirma-se, com relativa segurança, por exemplo, que “Em tal tempo (época, era, momento da História), tal ação era impossível ou tal atitude era impensável.” Num de seus últimos trabalhos, “Ano 1000, Ano 2000: na Pista de Nossos Medos” (1999), de deliciosa leitura, George Duby (1919-1996), identifica e comenta em abundância fatos reforçadores dessa percepção do tempo carregando consigo visões e percepções definidoras das decisões e ações humanas, individuais e coletivas. Depreende-se, por exemplo, que o medo da fome na Idade Média era muito diferente do mesmo medo hoje em dia; diante de catástrofes ou guerras que reduzissem a quantidade de alimentos, na Idade Média, o senhor abria os celeiros para os servos (cada um ficava com menos, mas ninguém ficava sem nada – a escassez era coletiva), ao contrário do que acontece contemporaneamente, quando a escassez eleva os preços (quem pode paga e tem comida até para armazenar; quem não pode pagar, passa fome – a escassez é seletiva).
Mas, por outro lado, dadas as amplas possibilidades humanas, a criatividade e o apelo à contestação de que são portadores os inovadores e revolucionários que sempre existiram, parece exagero aceitar o predomínio geral de ideias, mentalidades, valores, crenças, costumes, hábitos, comportamentos e sentimentos num dado momento histórico, da mesma forma que soa estranha a identificação de um “espírito nacional” para cada povo. A heterogeneidade é intrínseca à espécie humana.
Que predominem algumas ideias, porém coexistindo com outras que as problematizem e até mesmo contestem, com possibilidades de virem a ser elas as próximas predominantes, parece a postura mais equilibrada ao caso, coadnuando, aproximadamente, com Antônio Gramsci (1891-1937), na sua leitura a partir dos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia de ideias. Afinal, como desconsiderar o peso (hegemonia) do “espírito do tempo” medieval (sintetizado no cristianismo, com suas Cruzadas e sua Inquisição) sobre as vidas e o funcionamento da sociedade daquele período da História? Ou as tendências e propensões (pró-lucro e empreendimento) pós-Revolução Industrial? Como, por outro lado, não perceber que uma inovação impactante sobre o quotidiano e sobre as possibilidades materiais de sobrevivência (as máquinas substituindo o trabalho manual) é um fato explosivo sobre a mentalidade de um tempo ou, em termos gramscianos, às ideias hegemônicas e contra-hegemônicas em confronto? A noção de “um tempo”, uma era (denso em ideias que movimentam decisões e ações humanas em dada direção), não é incompatível com a aceitação de que novas ideias e, portanto, novos tempos, germinam, florescem e frutificam no interior dos velhos tempos. Dialética e devir. De fato, embora sendo o tempo que corre hoje (que correu ontem e que correrá amanhã) regido por ideias e valores, atitudes e comportamentos específicos, identificáveis pela análise histórica, ele apresenta fissuras nas quais vão penetrando, como água em frestas nas pedras, novos modos de ver e sentir, que podem se alastrar e transformar as fissuras em rombos.
Expressões como ethos (do grego, “caráter moral”) e zeitgeist (vocábulo alemão que quer dizer “espírito da época”) são usadas para se referir ao espírito do tempo (e, às vezes, de um povo). Zeitgeist é mais amplo, por alcançar mais esferas da vida e da época; goza do reforço acrescentado pelo brilho da argumentação de Hegel. Trata-se de uma concepção difundida por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1779-1831), em seu “A Filosofia da História” (1837). Mas a palavra foi usada anteriormente por Johann Gottifried Herder (1769-1803) em discussão com Christian Adolph Klotz (1738-1771), que falava de um genius seculi (do latim “espírito guardião do século”).
Zeitgeist soa melhor como clima intelectual e cultural de um tempo. Assim, se liga melhor ao pensamento e à arte, reforçando sua filiação ao Idealismo alemão, com todos os seus limites e potencialidades. Ajuda a formalizar aquela sensação que têm aqueles que miram o tempo em que vivem e percebem que os tic-tacs do relógio fazem mais do que empurrar o presente rumo ao futuro: eles arrastam consigo um feixe articulado de concepções, visões, ideias (filosofias e ideologias) a respeito de nós mesmos, do mundo e das nossas relações, as quais, muito adequadamente, podem ser chamadas de “espíritos”, capazes de transitar livremente entre as paredes que separam passado, presente e futuro, até que um dia possam descansar, rendidos por outros “espíritos”.
Comments