top of page
Foto do escritorValdemir Pires

49. Asas do tempo (Tempo - Livro I)


Arte: Fotopoema de Amanda Figueiredo


O tempo passa, o tempo voa (ou seja, passa depressa, ignorando obstáculos, como um pássaro). Quantas vezes se diz ou se ouve esta afirmativa, raramente questionada, lastreada na difundida sensação de que a vida é curta? E não só é curta, como pode terminar a qualquer instante; dirá Horácio Flaco (65 a.C. – 8 a.C.): “Aproveite o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã.”

No extremo oposto dessa pressa toda, encontra-se Tiavii, um nativo da Polinésia, nos mares do Sul, em cujo dialeto homem branco é papalagui. Dirá ele, em livro de 1920, contendo trechos de suas falas recolhidas por Erich Scheuermann (1878-1957), não compreender o porquê de o papalagui, ao mirar sua maquineta de medir o tempo (o relógio, então de bolso), se espanta e diz: “Lá se vai mais uma hora!”, já que em seguida vem outra hora inteira, novinha em folha.

Não é o caso de dizer, diante destas distintas perspectivas sobre a passagem e a suficiência ou não do tempo, que o tempo é relativo – esta constatação a faz a Física, cientificamente. A questão, aqui, é claramente antropológica: a relação com o tempo e a percepção dele depende da visão de mundo do indivíduo, vinda em grande medida de como, onde, com quem, fazendo o que, concretamente, vive. A noção de tempo é também cultural.

O tempo não está para condor ou águia nem para tartaruga ou bicho-preguiça. A que bicho se assemelha, no seu andar, depende de se viver nos mares do Sul ou na capital de São Paulo. O relógio interno de uma pessoa tende a discordar do ritmo cadenciado e sistemático do seu próprio relógio mecânico ou digital, conforme sua forma de sentir e lidar com o tempo, atrelada à cultura a que pertence. O polinésio achará atrevidamente adiantado o seu Rolex ganho na França a troco de depoimentos, enquanto o paulista rico com medo de assalto, dirá que seu Orient, de uso quotidiano nas ruas, parece estar sempre atrasado frente aos numerosos compromissos.

Além disso, tanto um homem em Samoa (que deixa o tempo “fluir” em companhia dos seus), quanto uma mulher na Avenida Paulista (querendo conter o ponteiro, para que haja tempo de pegar o filho na escola e juntos jantarem com o marido – caso ele não se atrase) pode, sob específicas circunstâncias, achar que o tempo está rápido ou devagar demais:

“O tempo é muito lento para os que esperam. Muito rápido para os que têm medo. Muito longo para os que lamentam. Muito curto para os que festejam” (Henry Van Dyke, 1852-1933).

Vai-se da Antropologia à Psicologia e o que se conclui é que a noção de tempo é relativa por razões além das einsteinianas, havendo-se que considerar a tribo e o indivíduo no seu aquilatar, mais do que o relógio, pois nenhum cronômetro é capaz de colocar todo mundo no mesmo compasso. A hora de sessenta minutos é uma útil convenção para os fazeres materiais, para bem e para mal, mas jamais será plenamente internalizada. Tomara, pelo menos!

Na Literatura há incontáveis passagens que oportunizam, poeticamente, refletir sobre a passagem do tempo. Há, por exemplo, um conto de Jorge Luis Borges (1899-1986) fabuloso, a respeito: “O Milagre Secreto”. Nele, Jaromir Hladik vai ser fuzilado. Pede, então, um tempo a Deus, para poder concluir aquele que seria seu melhor livro, a caminho, todo concebido, mas não totalmente escrito. Deus concede. Ele repassa meticulosamente o que já havia organizado, retoma pontos e conclui a obra. Tarefa para meses, com dedicação exclusiva. Mas tudo acontece entre o acionar do gatilho do carrasco e a chegada do projétil ao corpo da vítima. O tempo de Deus não segue a métrica dos homens! A divindade (conhecedora que deve ser, desde sempre, da descoberta recente, pelo homem, do conceito físico de espaço-tempo) não acelerou o tempo para Jaromir – e se poderia ou não, há muita controvérsia teológica –: o milagre secreto consistiu em permitir ao judeu assassinado pelos nazistas acelerar seus fazeres intelectuais dentro da mínima fração de tempo disponível. No tempo divino, a ação não se mede ao avançar dos ponteiros! Mas existe um tal tempo? Jaromir está morto e não pode nos responder. Está morto, para nós, também, sua opus magnum.

0 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Post: Blog2_Post
bottom of page