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Foto do escritorValdemir Pires

27. Tempo: humano, demasiado humano (Tempo - Livro I)




Tudo que se mede ou é objeto de contagem é contado e mensurado tendo por base uma unidade de medida, com suas frações e múltiplos, aceita pelos adotantes da prática em questão – mede-se e conta-se a partir de acordos, convenções, a partir de padrões convencionais, pois. É assim para o espaço (distâncias em metros e áreas em metros quadrados ou cúbicos, por exemplo), para a massa (peso em quilos, por exemplo), para a energia (quilowatt-hora, por exemplo), para a temperatura (graus centígrados, por exemplo), para a pressão atmosférica (quilopascal, por exemplo). É assim também para o tempo, medido em dias e em frações e múltiplos de dias.

É notavelmente inteligente a forma como o tempo é medido: um dia-calendário (24 horas, ou 1.440 minutos ou 86.400 segundos, abarcando, do ponto de vista da iluminação solar, um dia e uma noite) corresponde a um giro da Terra em torno de seu eixo (movimento de rotação); um ano (365 dias), por sua vez, corresponde a uma volta completa da Terra em torno do Sol (movimento de translação). O procedimento para medir a passagem do tempo é, pois, astronômico, colocando o ritmo da vida no planeta em sintonia com o universo próximo (o Sistema Solar). E trata-se de um procedimento em nada “natural”, sendo uma conquista da curiosidade humana associada à busca da verdade, por meio da ciência, em vez da revelação mística. Sua adoção não foi automática, nem simples, dada a complexidade que sua explicação envolve e a precariedade dos instrumentos de verificação dos fatos existentes ao tempo de sua afirmação inicial – lunetas e rudimentares telescópios, quando muito, o melhor deles inventado por Galileu Galilei (1564-1642), o mesmo cuja vida correu risco por afirmar que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Cabe aqui um registro: Como podem existir terraplanistas em pleno século XXI, sendo que no século anterior chegou-se à lua, numerosos satélites artificiais foram colocados na órbita da Terra e também estações espaciais tripuladas? O que devem eles pensar do relógio que carregam no pulso?)

A sagaz medição cósmica do tempo não resolve, porém, uma questão fundamental: desde quando se começou a contar os giros da Terra em torno de seu eixo e ao redor do Sol, para se chegar ao acúmulo de dias, anos e séculos atuais? É evidente que o planeta gira antes até da existência do homem, assim como é fato que a espécie levou muito tempo para habitá-lo, assim como para inventar o dia tal como hoje concebido. Então, porque estamos apenas no ano de 2019?

Se a definição de dia e sua contagem é uma invenção a partir de dados astronômicos objetivos e inquestionáveis, além de inalteráveis (a não ser por um incomensurável cataclisma), o estabelecimento do momento a partir do qual os dias são contados, acumulando-se anos, décadas, séculos e milênios, é uma escolha que nada tem de científica ou objetiva: esta escolha recai sobre um evento histórico considerado de grande importância para uma fração significativa da humanidade. O calendário islâmico, muçulmano ou hegírico (por iniciar-se com a Hégira, fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de julho de 622) acumula pouco mais de seis séculos a menos em relação ao calendário ocidental, dito gregoriano por ter sido estabelecido pelo Papa Gregório XIII (1502-1585), que tem início com o nascimento de Jesus Cristo. O calendário chinês (de cinco ciclos de doze anos governados por diferentes animais) inicia em 2.697 a. C., ano em que os ciclos regidos por animais foram adotados. Existem outros calendários, menos expressivos e menos conhecidos. Assim como há povos, embora numericamente reduzidos, atualmente, que não imaginam o tempo passando, sob contagem, como nós.

Um dos dados mais “objetivos’ da nossa existência, o tempo é (ora vejam!), uma simples convenção, uma invenção dos astrônomos que se tornou amplamente aceita; e seu acúmulo em anos, décadas, séculos e milênios, a fim de saber em que ano estamos, em que ano nascemos, em que ano isso ou aquilo aconteceu, em que futuro ano prevemos, desejamos ou articularemos a ocorrência deste ou daquele evento, esse acúmulo se dá a partir de escolhas historicamente localizadas, em que uma vontade específica teve suficiente poder para se os impor. Duas dessas escolhas, a cristã e a muçulmana, identificam civilizações e crenças que já se enfrentaram sangrentamente (nas Cruzadas) e até hoje convivem sob divergências expressivas. Essas escolhas, ao determinarem o próprio tempo, enquanto passado “contabilizado”, lhe dão um caráter indelevelmente humano: tomam o tempo-calendário como suporte para a narração da História (ao passo que dão aos anos suas marcas delimitadoras do avançar da própria História e das histórias individuais ou biografias – o ano de 1789 dá origem à Idade Moderna, por causa da Revolução Francesa, por exemplo; 1942 é o ano do nascimento de Milton Nascimento). Além disso, essas escolhas consideram como origem do tempo, uma, o nascimento do filho de Deus e, outra, um acontecimento importante na vida do profeta de Alá – ou seja, começam a contar os anos tendo como ponto de partida um dado religioso, o qual, pela sua natureza, revela a tentativa coletiva de situar o homem para além do próprio tempo, já que nessas religiões a vida terrena é só um estágio para as almas a que pertencem os corpos que o tempo, invariavelmente, devora. Ademais é notório o quanto a opção por um calendário é delimitador de um posicionamento face à vida quotidiana e pós-morte, o quanto é político-ideológico e cultural-religioso, situando-se, no entanto, no campo das disputas humanas em torno de ideias e interesses muito concretos e terrenos.

O tempo, da maneira como lidamos com ele, tem a profunda marca dos nossos medos e das opções que fazemos para enfrentá-lo, aqui, agora e na eternidade. O tempo, que corre, circula em nossas veias, escorre junto com nosso suor. O tempo somos nós que, ao mesmo tempo, não somos mais do que o tempo de vida de que dispomos.

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