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Foto do escritorValdemir Pires

28.Tempo e sonho (Tempo - Livro I)



- Sonhei com muitas coisas. Mas a que mais me marcou foi um espetáculo de palhaços. Muito bonito, poético. Um tirou da boca um buquezinho com rosas, cartas e comprimidos brancos. As rosas eram artificiais, as cartas eram emocionantes e os comprimidos eram para saber se as pessoas estavam mentindo ou falando a verdade. Eu olhava para as pessoas da plateia sentada no meu lugar e algumas delas, que pareciam ser da companhia, falavam para eu ler a carta. Quando tirei uma para ler, uma menina disse que ia filmar. Li e chorei, porque era muito bonita.

N. me contou este sonho, que tivera na sua primeira semana de férias. Lembrei-a de que estava muito cansada e psicologicamente abalada com acontecimentos dos últimos meses, em seu trabalho, ao longo dos quais vinha tendo pesadelos quase diários. Num deles, uma parede do seu escritório vinha abaixo pela força de uma enxurrada de água turva, que alagava tudo, afogando as pessoas do andar de baixo. Os colegas gritavam por socorro e ela não conseguia ajudá-los; isso lhe dava uma imensa agonia, que foi se tornando desespero. Pouco tempo depois, mudanças na diretoria resultaram na demissão de vários daqueles seus colegas, alguns deles vitais para o seu bem-estar naquela organização. O pesadelo revelou-se uma premonição.

Sonhos e pesadelos são eventos envoltos em mistério, por mais que tenham sido e venham sendo estudados. Eles, de alguma maneira, dialogam com a realidade e podem ajudar a compreender e solucionar problemas individuais como traumas e fobias, como teorizou Sigmund Freud (1856-1939) no seu “A interpretação dos sonhos” (1900), em que faz uso do conceito de inconsciente, uma espécie de repositório (não raro saco de pancadas) de desejos reprimidos e frustrações que atravancam e até fazem desandar a vida tal como conduzida pelo consciente. O relato dos sonhos e sua interpretação são prescritos como forma de cura e acesso ao autoconhecimento. Embora por vias diferentes (dando maior peso à cultura, aos mitos e às religiões e considerando um “inconsciente coletivo”), o fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961), prosseguiu na confiança de que o sonho tem um papel de relevo na compreensão da mente humana. Jung, entretanto, não destaca nos sonhos a relação com os desejos reprimidos no inconsciente, como Freud, pois para ele os sonhos são mensageiros de complexos diversos, ligados ao inconsciente coletivo.

Os sonhos se manifestam num campo que põe em contato consciente e inconsciente; eles “ocorrem” fora do tempo convencional (já que no inconsciente nada acontece de fato – como num filme), mas fazem uso das noções de espaço e tempo que estão no consciente (embora deem a elas uma elasticidade impossível na concretude da vida). Quando vamos relatar um sonho, nos damos conta de que, por exemplo, o presente era um pouco passado ou futuro, uma pessoa não era tal como a conhecemos (mas era ela, sim), alguém voou sem ter asas, chovia e ninguém se molhava etc. Essas distorções típicas do onírico algumas vezes geram conforto ou consolo e outras vezes redundam em desconforto ou desconsolo: a sensação dependerá de uma série de fatores relacionados à vida e ao momento que o sonhador atravessa ou à sua visão e interpretação discordantes do mundo, das coisas, das relações.

Dos relatos de N., o sonho dos palhaços aparenta resultar do impacto no inconsciente do relaxamento consciente advindo das férias; enquanto o pesadelo da enxurrada põe em contato os dois níveis da consciência no esforço de ajustar uma fragilidade posta, repentinamente, pelas pressões extremas de uma mudança organizacional. Em ambos os sonhos acontecem coisas fantásticas, mas com certo grau de coerência. Não há, por exemplo, idas e voltas na cronologia. São sonhos “comportados” do ponto de vista do tempo. Quanto ao espaço e personagens, as dissonâncias entre real e onírico também não são grandes (alguém do passado ali, sendo levado pela enxurrada, mas que não pertence ao momento atual de N., por exemplo). N., entretanto, sonha e tem pesadelos com certa frequência, em geral com numerosos eventos fantásticos, que ela consegue descrever com um nível de detalhes impressionante.

O onírico, no inconsciente, é a normalidade. Sonhar acordado, no nível do consciente, por sua vez, costuma ser visto como desvio: “Pedro se dará mal se continuar com a cabeça nas nuvens.” Nuvem como algo de formato indefinido e fora do alcance: lugar dos sonhos, ao contrário do chão firme, lugar da vida real. Quer isso dizer que há um tempo – real, cronológico – em que vivemos. Fora dele, tudo são quimeras ou o nada, perda de tempo na acepção dos mais broncos. Mas, em contrapartida, o simples sonhar, que a todos acontece, com maior ou com menor frequência, com maior ou menor intensidade, é, em si, prova de que esta tal “vida real” não basta – empreendemos fugas para suportá-la, no nível do inconsciente. Muitas vezes, porém, essas fugas ocorrem ao longo da vigília (no nível do consciente), tal como acontece nos fazeres do artista ou dos que são portadores de utopias: busca-se a epifania numa obra (artista – como Pedro, talvez) ou um mundo novo e melhor (militante político), busca tão envolvente que coloca quem a empreende numa bolha temporal onírica dentro mesmo da linha do tempo real compartilhada com os demais.

É a possibilidade de a bolha temporal onírica (em que estão imersos os artistas e portadores de utopias) “contaminar” a sucessão temporal real que abre brechas para que sonhos se tornem realidade. Em tempos distópicos ou em tempos em que a arte é interditada ou sufocada, o que acontece é a transformação da vida real em pesadelo insuportável. Nesses tempos, os antídotos possíveis são a arte e a utopia (primas, entre si, aliás), espécies de fugas que terminam sendo seu contrário: permanência na realidade para, a partir de dentro dela, mas sem ser engolido por ela, encetar a mudança que afasta o pesadelo de viver sem poder sonhar e sem poder brincar sério (sem arte).

O que há por se pesquisar, pensar e descobrir a respeito dos sonhos é muito, um tanto infinito. Mas independentemente do que se venha a descobrir, sobre o dito de Jean Cocteau (1889-1963) não há que discordar: “Os sonhos são a literatura do sono”, literatura que, pela narração de um dos seus, N. revelou potencialmente dominar, dormindo e também acordada.


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