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31. Tempo e máquinas - I (Tempo - Livro I)

Atualizado: 14 de mai. de 2021


Imagem: Tecnohabitat, Valdemir Pires (colagem de recortes sobre papelão).


Os homens se relacionam entre si desde sempre. É parte da condição humana, não só para a perpetuação da espécie, mas também para que a vida seja o que é: um permanente, infinito e variável conjunto de interações, encontros e desencontros, na busca de satisfazer necessidades materiais, afetos e inquietações do espírito.

Os relacionamentos humanos, diferentemente daqueles mantidos entre indivíduos que denominamos animais irracionais, não são imutáveis. Isto porque os homens, ao longo do tempo, fazem História, ou seja, modificam-se, modificam o mundo, modificam a natureza e as formas de manifestação de seus relacionamentos – o que implica dizer que também os sentimentos de que são portadores são moldados pelos homens, ao sabor de seus fazeres quotidianos e de seu potencial cognitivo e de sua capacidade de imaginar. Esta permanente transformação de que o homem é sujeito e objeto ao mesmo tempo, singular e coletivo, afeta a ele, aos outros seres, às coisas e às ideias; o que é modificado são tanto a vida e as condições para ser vivida, como a percepção que delas se tem. As mudanças acontecem o tempo todo. E cada vez mais aceleradamente.

Um dos caminhos, talvez o principal, pelos quais o homem modifica o mundo, a si e ao modo como se relaciona com o mundo, é aquele da invenção e fabricação de artefatos, instrumentos e máquinas e a consequente introdução desses objetos criados na sua vida quotidiana. Seja porque desde sempre esses objetos ampliam confortos e novas possibilidades corporais e mentais para todos, seja porque, a partir de um certo momento da história, sua introdução se tornou fonte de riqueza e poder para determinados grupos, há muito não se vislumbra a possibilidade de que em algum momento deixem de se diversificar e aperfeiçoar, invadindo por completo a vida, a ponto de já se poder dizer hoje que não há mais, a não ser marginalmente, o que se pode chamar de vida humana, pois esta se tornou vida máquino-humana. Os seres humanos atuais são inconcebíveis sem suas máquinas. Homens e máquinas hoje dividem o mundo, ambos o habitam; a Terra é, não a casa cósmica dos homens, mas um lugar de homens e máquinas.

Não é de hoje que se diz que as máquinas avançam sobre a vida humana. Com isso modificam profundamente a relação homem-tempo. De início, as máquinas, mais fortes e precisas que o corpo humano, foram paulatinamente substituindo o trabalho braçal, realizando-o com mais eficiência e rapidez (economizando horas de trabalho físico-cerebral) – a libertação coletiva só não foi maior do que a até aqui conquistada porque os benefícios da aceleração produtiva nunca foram distribuídos entre todos, devido ao modo como os processos produtivos foram organizados, à base da dominação de uns sobre outros e à base da exploração de uns pelos outros.

As máquinas das primeiras revoluções industriais tiveram como principal resultado a perda de controle sobre o tempo utilizado para produzir, dentro da fábrica, sendo a linha de produção a face mais evidente da transformação ocorrida. Nunca mais foi possível produzir ao ritmo humano, com suas inconstâncias e distrações. O homem-carlitos dos “Tempos modernos” teve alienado seu tempo e sua criatividade, mas ainda sob controle último do homem-gerente, responsável por conceber e organizar o processo produtivo subordinador. Havia, enfim, alguns homens por trás das máquinas, além de seus donos, mantendo as engrenagens girando. Essa era da administração tornou inúteis algumas habilidades (braçais), mas criou em seu lugar outras (mentais).

As últimas e recentes revoluções produtivas (não mais apenas industriais) têm conteúdo e natureza muito distintos daquelas anteriores. Seguem racionalizando os processos produtivos, aumentando-lhes a produtividade, mas vão além: estão alterando, também na linha da maior produtividade, as etapas pré e pós-produtivas da economia: armazenamento/estocagem, transporte/distribuição, relacionamentos econômicos (fornecedores de insumos x produtores, vendedores x compradores, empresas ofertantes x clientes demandantes de bens de consumo etc.).

A essência da revolução econômica atual reside na possibilidade de adoção de máquinas que suplantam as habilidades humanas cerebrais/mentais e não apenas as braçais. Com o advento dos softwares, aplicativos e programas, que hoje possibilitam não apenas rotinizar e controlar com absoluta eficiência as atividades, mas até caminhar na direção da inteligência artificial (máquinas que quase-pensam e decidem), até mesmo aqueles homens-gerentes estão obsoletos – basta alimentar adequadamente os sistemas com dados que eles mantêm a atividade econômica concreta em andamento, sob controle de muito poucos (para que aquela imensa hierarquia administrativa do passado, custosa, com seus chefes, gerentes, diretores?).

As primeiras revoluções industriais afetaram profundamente a relação homem-tempo ao acelerar e homogeneizar os movimentos dos corpos na lida com os fazeres produtivos. As últimas estão acelerando os processos de decisão e controle desses mesmos fazeres. No primeiro caso, as máquinas alijam os homens da oportunidade de colocarem seus corpos a serviço da economia (e assim se sustentarem); no segundo, retiram-lhes a chance de alocarem suas competências cognitivas no mercado, de oferecerem serviços que lhes demandam o cérebro.

O impacto das últimas revoluções econômico-produtivas-distributivas sobre as relações humanas é muito maior do que o das primeiras (até porque as duas se interpenetram e se fortalecem), não só por conta do que acontece na economia, mas fundamentalmente por causa do que acontece no tocante ao teor humano das relações interpessoais e das relações indivíduo-coletivo praticáveis: essas relações estão cada vez mais sob o imperativo lógico-matemático das máquinas e sistemas, imperativo que nos obriga a ouvir, sem ter como reagir a afirmativas do tipo “O sistema não permite, tenho que fazer desta forma, você precisa fazer assim” (forma contra a qual se reclama, mas diante da qual não existe argumento aceitável do ponto de vista lógico-sistêmico). O que acontece é que, enquanto a dimensão humana caracteriza-se pelo seu aspecto dialógico (troca de raciocínios que acolhe diferenças, divergências e conflitos, obrigando a soluções negociadas), a dimensão máquina-sistema é tipicamente não raciocinante/dialogante. Quando esta última se sobrepõe à primeira, a máquina já dominou o homem; não é preciso esperar que seja criado um robô (com estrutura física semelhante à do corpo humano) dando ordens verbais a pessoas. Apesar de que não deve demorar muito para vivermos este tempo distópico, em que seremos alienados não só de nosso tempo-ritmo, mas também de nossa essência, até agora eivada de sentimentos histórico-temporais, inacessíveis aos números e à linguagem de máquinas.

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