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Foto do escritorValdemir Pires

32. Tempo e cidade (Tempo - Livro I)


Arte: Vídeo-poema de Tadeu Marcarto


Que no campo ou fora das áreas urbanas agitadas a “velocidade” do tempo é diferente da que tem na cidade não é apenas uma impressão, mas um fato, porque essa tal “velocidade” não depende, verdadeiramente, do tempo, mas sim da impressão que os eventos causam à nossa mente. No campo o tempo “vai mais devagar” do que na cidade porque lá o número de eventos é menor e o modo como afetam as pessoas é, em certa medida, mais leve, porque natural. A diferença pode ser destacada pela comparação entre andar a pé no canteiro central de uma avenida apinhada de veículos com condutores se dirigindo ao trabalho, de manhã, e uma caminhada, de igual duração, numa trilha num horto florestal, no mesmo horário. Inconcebível, nas ruas, avenidas, praças, alamedas de uma grande cidade, um acontecimento como o narrado por Marcel Proust (1871-1922) em No caminho de Swann (1913):


Paramos um momento diante da cerca. Aproximava-se o fim do tempo dos lilases; alguns expandiam ainda em altos lustres malvas as cúpulas delicadas de suas flores, mas em muitas partes da folhagem onde uma semana antes rebentava o seu embalsamado musgo, agora desandava, apoucada e enegrecida, uma espuma oca e sem perfume. Meu avô mostrava a meu pai o que naqueles lugares permanecia o mesmo e o que havia mudado, desde o passeio que ele dera com o sr. Swann no dia da morte de sua esposa; e aproveitou o ensejo para contar mais uma vez aquele passeio.

Diante de nós, uma alameda marginada de capuchinhos subia em pleno sol para o castelo. À direita, pelo contrário, o parque estendia-se em terreno plano. (...)

A meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa.



A vida rural (excluindo-se dela as fazendas modernas que funcionam sob planejamento mercadológico submetido à busca de alta produtividade), antes predominante e hoje vivida por uma fração mínima da humanidade, não é cronometrada, propriamente, por mais que seus protagonistas disponham de relógios e despertadores. A figura do galo despertando o homem do campo com seu canto no fim da madrugada é emblemática: o ritmo da vida é ditado pela natureza. No campo (principalmente quando não era fartamente mecanizado), não só o galo e a algazarra matutina dos passarinhos despertam os que irão lavrar a terra, plantar e colher: as refeições acontecem mais cedo, para ajudar no desempenho dos fazeres rústicos e, ao final do dia, para não atrapalhar o sono, que deve ser restaurador; procura-se aproveitar as horas de sol ameno pra o trabalho não cansar mais que o natural; dorme-se cedo, porque um mínimo de horas é necessário para recuperar as energias e também porque não há muito o que fazer nas noites; planta-se quando é tempo de plantar e colhe-se quando é tempo de colher; as distâncias entre lugares são maiores (e se não houver veículo, demora-se para chegar a pé ou sobre o lombo de um animal, o que reduz o número de deslocamentos ao mínimo) – há, enfim, toda uma rotina ditada pela natureza, restritiva.

A vida urbana, por seu turno, é agitada e variada. Sem um relógio, um calendário e uma agenda não é possível nela se organizar: perde-se o ônibus ou metrô, chega-se atrasado ao trabalho, arranja-se confusão por não estar aqui ou ali na hora combinada; paga-se multa por não pagar uma conta no dia do vencimento. O sol, a lua e as estrelas e muito mais os galos são totalmente esquecidos, pois seu ritmo é lento demais e eles “são inúteis” ou insuficientemente precisos.

A vida rural flui, como a água que segue seu curso normal, ditado pelo relevo, da nascente à desembocadura – nela a natureza define o ritmo. A vida urbana, por seu turno, desenvolve-se aos saltos, numa corrida contra o tempo: o sujeito citadino o tempo todo busca estar em determinados lugares e tenta evitar outros, na frenética luta pela sobrevivência, necessitada de incontáveis mercadorias que é preciso adquirir.

É como se a cidade tivesse libertado o homem dos rigores e do ritmo invariável da natureza, submetendo-o, entretanto, a outra ditadura: a do relógio mecânico, cujas engrenagens se submetem à lógica da fábrica, do comércio e dos bancos. Não é mais o galo que canta chamando para a lavoura, mas a sirene, ou antes, o ruído dos motores que avisa, no começo da manhã (iniciada às sete e não às cinco ou seis da madrugada) que está chegando a hora de assumir o posto de empregado num endereço industrial, comercial ou de serviço.

A passagem do urbano para o rural como locais por excelência para se viver implicou, também, alteração radical na paisagem, a qual, sem dúvida, também afeta a sensação da passagem do tempo. Uma coisa é circular entre edifícios, qualquer que seja o meio de locomoção, sob o ruído típico das ruas das cidades; outra é andar nas estradas das fazendas ou entre elas, no meio do silêncio, da vegetação e com a presença da fauna. A paisagem rural muda conforme as estações e safras; é uma mudança lenta e previsível. Na cidade acontece o contrário. A própria cidade tem sua feição modificada diariamente. Sua marca é não a permanência, mas a mudança. Virginia Wolf (1882-1941), em Maré de Oxford Street (1931 ou 1932), falando desse sítio de comércio popular na Londres das primeiras décadas do século XX, descreve magistralmente essa condição:


O encanto da Londres moderna é ser construída não para durar, é ser construída para passar. Sua fragilidade, sua transparência, seus ornamentos de estuque colorido causam um prazer diferente e atingem um objetivo diferente do desejado e tentado pelos velhos construtores e seus patronos – a nobreza da Inglaterra. Seu orgulho exigia a ilusão de permanência. O nosso, pelo contrário, parece deleitar-se em provar que podemos tornar a pedra e o tijolo tão transitórios quanto nossos próprios desejos. (...) Derrubamos e construímos enquanto esperamos ser derrubados e reconstruídos. É um impulso provocador da criação e da fertilidade. A descoberta é estimulada e a invenção fica em alerta (...)

A mera ideia de idade, da solidez, da permanência através dos séculos é detestável para Oxfor Street. (...)

...essa rua espalhafatosa, alvoroçada e vulgar lembra-nos que a vida é uma luta; que toda construção é perecível; que toda exibição é vaidade.


A cidade, fenômeno central da modernidade e locus de sua manifestação, impõe e sofre o agitar frenético e incessante de uma era em que o tempo não dá trégua a nada e a ninguém. E isso acontece porque ele deixou de ser natural para ser cultural, saiu do riacho em que corria, líquido e voluntariamente, para pipocar doido nos trilhos de uma ferrovia fantasma que lhe impõe rumo e ritmo. Mais do que canalizado e desviado do curso normal do terreno, o tempo foi deslocado e modificado, submetido: é o tempo moderno. Que, já no século XX, foi se tornando pós-moderno, ainda mais acelerado e fugidio, saltando do trem para o avião, do correio para o telefone (móvel e com e redes sociais instaladas...), do emprego para a ocupação profissional mutante e incerta, do industrial para os serviços, do certo para o duvidoso, do relógio de pulso para a ubiquidade cronológica alimentada por informações em rede e via satélite, em telas espalhadas em todo canto e lugar.

Na era das fazendas senhoriais e pequenas vilas que as serviam e delas obtinham o sustento, o tempo era como um nobre e se movimentava ao ritmo da renda da terra (subordinada à colheita incerta). Com o advento das grandes cidades, o tempo se proletarizou, nos passos acelerados do capital faminto por lucro e juro, a todo momento, chova ou faça sol. Na fase atual de urbanização global, em rede, o tempo não será nem como um nobre, nem como um proletário, mas como um andarilho cheio de apetrechos tecnológicos que parecem que farão ruir os campos e cidades, enquanto começa a pensar em colonizar outros planetas.

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