Imagem: Cena do filme "Dois Papas", de Fernando Meirelles).
No filme “Dois Papas” (2019), de Fernando Meirelles (1955-), há uma cena longa em que Jorge Mario Bergoglio (1936-) é inquirido por Joseph Aloisius Ratzinger (1927-) acerca de suas convicções heterodoxas, das quais o então pontífice discorda frontalmente, tomando-as por populistas. Uma dessas discordâncias repousa sobre o papel da mudança na relação dos cristãos com a Igreja Católica Apostólica Romana (30 d.C.-). Se o mundo muda e, com ele o comportamento das pessoas, deve a Igreja mudar também, para se adequar aos novos tempos? Ou deve ela manter-se firme na sua doutrina, muro de contenção da degeneração, ainda que venha a perder adeptos?
Na cena mencionada confrontam-se duas figuras que não poderiam melhor representar os dois extremos de um debate que o catolicismo está enfrentando há décadas: Bento XVI, defendendo intransigentemente o dogma, e Francisco, o defensor e arauto das mudanças. O que deve mudar e o que deve permanecer imutável? Pergunta tanto filosófica quanto teológica que remete a outra, organizacional/institucional: até que ponto a doutrina poder transigir sem perder a condição e o caráter de limite intransponível? Muito concretamente: Deve o aborto, por exemplo, ser permitido? O casamento, como sacramento, pode ser desfeito diante de Deus? Podem ser aceitas as relações homossexuais?
Nesse debate, ambos os pontífices se equilibram em uma corda bamba esticada pelos tempos atuais, Bergoglio pendendo para um lado (o populista, o possibilista), Ratzinger tendendo a outro (como determinista, como “cão de Deus”). Trata-se de uma discussão posta pela dinâmica “líquida” (Zigmunt Bauman, 1925-2017) da pós-modernidade, em que “tudo que é sólido se desmanchar no ar “(--) e que, ao fim e ao cabo, conduz a que se pergunte: E Deus, também Ele sofre a ácida corrosão desta era engendradora da pós-verdade? Ou, pelo contrário, Ele se constitui (como Certeza) na única fortaleza contra o apocalipse da fé?
Na resposta a essas perguntas, o que é certo e o que é mera opinião? Não sem razão, no filme, o Papa, diante de afirmativas do cardeal argentino que colocam o dogma em questão, dispara: “Então vale mais o que você pensa do que aquilo em que a Igreja até hoje acreditou?”. Com isso, coloca a nu do que trata o debate: indivíduo versus instituição, tradição versus mudança, ser versus devir – prevalecendo um dos lados, o resultado será mudança ou manutenção do status quo. Se a mudança for favorecida, por ser um dos interlocutores o portador do que espera a maioria (sem que as estruturas eclesiásticas não-democráticas possam impedir), a Igreja passa por transformação. Mas o que sobrevirá não poderá, todavia, desfigurá-la de tal maneira que não será nunca mais a mesma instituição?
Fato é, na vida terrena, que tudo passa, tudo muda – argumenta, aliás, Francisco na tentativa de convencer Bento. A favor dessa abordagem milita toda uma tradição filosófica de peso, desde os gregos até os alemães: tempo e mudança caminham de mãos dadas e, portanto, abandonar a mudança é ficar longe do tempo, o que, teologicamente, só é possível a Deus, eterno. Será que pode uma instituição humana, a Igreja, como Deus, ser eterna e impermeável à mudança?
O Papa Francisco, na homilia do Natal de 2019, incluiu a defesa da mudança. Esta postura se expressa cristalinamente no seguinte trecho: “Tornar-se dom é dar sentido à vida, sendo este o melhor modo para mudar o mundo: nós mudamos, a Igreja muda, a história muda, quando começamos a querer mudar, não os outros, mas a nós mesmos, fazendo da nossa vida um dom.”
Fica clara a natureza da mudança que o Papa propõe: não se trata de mudar o mundo e os outros, mas a mim mesmo, para, por essa via, sob amparo do dom, ver o mundo também mudar e, nele, a Igreja, alicerce humano do dom. Opera-se de dentro para fora, pelo conjunto das posturas e ações individuais o todo é atingido, a partir das partes que se unem. Mas dentro de cada um está o dom. Que é o dom? O dom é Jesus, oferecido ao homem pela graça de Deus, não a troco de algo, mas por puro e gratuito amor divino. Jesus é amor de Deus, que se coloca como dom possível ao homem. Fazer da nossa vida um dom é corresponder ao amor de Deus, em tudo colocando o amor, a Ele e ao próximo, tal como fez Jesus. Fazer da nossa vida um dom é amar como Jesus amou. Mas amar como o Cristo é começar um novo tempo: um tempo de mudança, um tempo revolucionário, um tempo de inversão de valores e crenças, um tempo em que os últimos serão os primeiros, um rico terá mais dificuldades para passar pelo buraco de uma agulha do que um camelo, a prostituta será abraçada e não apedrejada, os cambistas e vendedores do templo serão enxotados...
Terão tempo os líquidos homens pós-modernos para tanto amor? Sobreviverá, ao tempo da fé nas posses, a Igreja do tanto amar ao ponto de se deixar crucificar? Sobreviverá Francisco o suficiente e com a força necessária para manter aberta a aposta de seu pontificado? Só o tempo dirá.
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