A fala é um atributo humano sem o qual não seríamos o que somos. Ela faz parte, portanto, da nossa essência, quando olhamos para além do biológico. Enquanto seres vivos, somos “bichos”, potencialmente selvagens, como todos os outros animais com os quais (tão mal) convivemos. Mas como seres racionais, vivendo em comunidade, participamos, necessariamente, dessa invenção chamada linguagem. Nós nos comunicamos de um modo só nosso. E a singularidade vem principalmente da plasticidade do nosso instrumento de comunicação: com as palavras somos capazes de nos referir a tudo que existe ou possa ser imaginado; podemos descrever, narrar e dissertar e, antes, nomear. Podemos, sobretudo, brincar, num terreno e em momentos totalmente imaginários, o que é libertador e, tantas vezes, a condição para não desistir.
A escrita e a leitura, uma indissociável da outra, são um passo a mais em relação à fala, modificando-a em profundidade (não só pela possibilidade de registro e transmissão ampliada), com todas as suas consequências. A escrita codifica, organiza, formaliza, aperfeiçoa e, assim, pereniza e amplifica o alcance da língua.
A língua, a escrita e a leitura são um conjunto que é uma das maiores maravilhas em nossas mentes e corações, transbordando para o mundo e transformando-o, ao mesmo tempo que permitem que nossas mentes e corações sejam inundados pelo mundo, também se transformando: indivíduos e sociedade em permanente interação transformadora, por meio de um fio que é pura invenção, artifício da imaginação.
Enquanto artefatos (e não dados da natureza), a escrita e a leitura demandam tempo e dedicação para serem dominadas e utilizadas. A começar pelo tempo exigido para a alfabetização, como preparo inevitável. Saber ler e escrever não vêm com o nascimento, como, de resto, saber falar. São aquisições, conquistas.
Que feito, este, hoje, o de existirem bilhões de pessoas, no mundo todo, capazes de ler e escrever! Levou tempo para se chegar a ele, embora bem menos do que o tempo transcorrido antes da invenção da escrita e, principalmente, antes da invenção dos tipos móveis, que ampliou seu alcance. (Obrigado, Gutenberg! Se Cristo, como afirmam os cristãos, nos livrou do pecado original, você nos livrou da ignorância potencial.) Exigiu muito esforço coletivo, essa conquista: toda uma indústria do livro, todo um sistema de escolarização, toda uma cultura pós-tradição oral.
Embora consolidadas, escrita e leitura permanecem, para a imensa maioria dos iniciados, mero instrumento de interação pragmática (o que não é pouco, muito menos desprezível). Lê-se para aprender a fazer coisas, para solucionar problemas, para conquistar degraus da vida profissional, para coexistir funcionalmente numa sociedade letrada. Pouco se lê, de fato, embora muito se escreva (como nunca!), para compreender a vida enquanto algo que suplanta (e justifica) a existência, o simples estar aí, respirando, comendo, bebendo, dormindo, copulando e trabalhando (e sob que condições!).
– Como ler “futilidades” se o tempo é tão curto? – reage a pessoa ocupada, atarefada, importante (sentindo-se) deste mundo instrumental tão pouco questionado e que, sem que se possa perceber, coloca cada um “no seu lugar”, cumprindo sua “função”.
Ler requer tempo. Em se tratando de leituras não pragmáticas, não instrumentais, muito mais: textos de filosofia e literatura não devem ser engolidos sem antes serem mastigados, pois do contrário perdem em nutrientes e em sabor. Leituras dessa natureza são mais bem aproveitadas quando a dedicação a elas leva ao esquecimento do tempo cronológico que se está vivendo, lançando o leitor ao mundo particular e específico da obra, um tempo-bolha (mental) dentro do tempo-linha (físico-cerebral). Nesse tempo, tudo acontece como se o indivíduo tivesse saído do mundo circundante e entrado em outro universo, como se tivesse sido abduzido, como se tivesse atravessado uma dobra temporal. Tudo por obra e arte de alguns caracteres combinados de mudo criativo!
Então, o tempo dedicado à leitura não é perdido, mas investido com muita vantagem (no linguajar do economista). Mais do que isso, o tempo em que se mergulha no mundo de obras filosóficas e literárias é o tempo que rende (ainda no economês) uma grande aquisição: a capacidade de compreender e, quiçá criticar, a ideia de que tudo tem que render, que a produtividade deve mover o mundo, que o tempo deve corresponder a dinheiro; a capacidade de compreender, enfim, a vida em suas múltiplas e fascinantes dimensões.
Mas ler assim só é possível quando o tempo dedicado à leitura provoca sentimentos e sensações que em nada ficam devendo ao tempo destinado a um dia na praia, a algumas horas na danceteria, a um bate-papo no botequim ou outras formas de lazer (ou entretenimento, considerando-se também miudezas). E leitura assim sentida é algo que se conquista. Como? Lendo, lendo, lendo. Com a consciência de que o tempo aplicado pelo leitor é sempre infinitamente menor do que o tempo dedicado pelo autor: a algumas horas de leitura correspondem meses, anos, às vezes a vida dedicados à escrita da obra.
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