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Foto do escritorValdemir Pires

43. Tempo e música (Tempo - Livro I)



Uma música é, na sua essência, uma combinação sucessiva, num intervalo de tempo, de movimento e repouso (de cordas vocais, de fios esticados, de madeiras, de metais, de caixas de percussão), contendo melodia, ritmo e harmonia que a singularizam, resultando em sensações que remetem aos mais diferentes estados de espírito e emoções (alegria, euforia, melancolia, tristeza, saudade, plenitude, desejo, paz etc.).

A música preenche o tempo com algo que não é ação, nem reflexão. É uma arte e, como tal, não serve ao pensamento nem aos fazeres pragmáticos, não tem uma utilidade no sentido de ser necessária à manutenção da vida material. É jogo, é brincadeira.

Sobrevive-se sem a música, embora aos sons e ruídos não se possa escapar: não nos damos conta, mas durante a vigília não passamos um segundo sequer sem que uma vibração atinja nosso aparelho auditivo (a não ser que providenciemos isolamento acústico total). O ar em movimento (vento) atingindo as folhas de uma árvore, um objeto que cai a pouca distância (uma taça de cristal, perdida para sempre?), um tiro na esquina, um grito e um choro (de quem recebeu o tiro ou de uma testemunha assustada?), um teclado sendo digitado, alguém sorvendo o café com estridência dos lábios (que mal educado!), um assovio, um motor acelerando, o vendedor anunciando sua mercadoria, o noticiário na televisão, a trovoada, a “música” não humana – um pássaro que “canta” (as aspas, aqui, para registrar que não se trata, neste caso, de fato, de música), tudo isso e muito mais preenche o tempo inteiro de todo e qualquer ser vivente que não tenha sido privado do sentido da audição.

A música é o rompimento do silêncio, num dado momento, por meio de sons intencional e artisticamente produzidos (e não gerados naturalmente ou desprovidos de intencionalidade), com a finalidade de provocar nos ouvintes sensações específicas, que evocam sentimentos. A música tem a intenção de emocionar, de provocar, a partir do corpo, o despertar da alma. Para Arthur Schopenhauer (1788-1860), para quem a vida é sofrimento, a música é um lenitivo, estando acima de todas as outras artes, por ser a que menos necessita da mobilização racional para se produzir, por ser a mais epifânica das artes. Ela parece suspender o tempo (em si um conceito, produto da racionalidade), lançando o apreciador numa espécie de eternidade momentânea, em que o corpo cede o controle à alma, flutuando fora do próprio espaço. A música é divina?

Uma vida sem música é uma vida triste, pode-se dizer, a partir de Schopenhauer. Seria ela, então, uma porta ou janela para fugir, por alguns momentos, do “vale de lágrimas”? Ou seria um canal de acesso, na Terra, à harmonia das esferas concebida pelos filósofos gregos, Pitágoras (571 ou 570 – 500 ou 490 a.C.) exponencialmente, em sua compreensão da mecânica celeste e da matemática?

Se o tempo dedicado à audição da música é um tempo de libertação, de prazer, de deleite (ainda que seja necessário esforço para se “reservar” tempo para isso num mundo excessivamente pragmático), o mesmo não acontece a quem concebe e a quem executa a música. As habilidades de compositor, de arranjador, de maestro, de músico, apesar de tantas vezes se relacionar à vocação, são de difícil desenvolvimento, demandando fração expressiva de uma vida. Assim sendo, o ouvinte recebe, no ato de apreciação musical, o resultado de fabulosos esforços criativos e de manejo de instrumentos. Isso é multiplicado diante de uma orquestra. Ao não perceber-se que assim é, que as entregas dos artistas são fruto de muito trabalho, acaba acontecendo de “festa acabada, músicos a pé” (“Cantando no Toró”, Chico Buarque de Holanda) – os emissários dos deuses são abandonados assim que transmitem a mensagem: que se virem para voltar ao seu mundo de origem.

No contexto atual, da música gravada, reprodutível em larga escala, nas residências, nos veículos em movimento, nos estabelecimentos comerciais, em qualquer local e a qualquer momento, enfim, sem que se tenha que recorrer aos músicos e cantores, a música invade o tempo quotidiano, o tempo “dedicado à audição” se multiplicando, tantas vezes involuntariamente, de modo que melodias e canções se juntam aos demais ruídos do espaço urbano, numa artificialidade que coloca a arte musical distante de sua natureza epifânica. Graças à “indústria cultural”, tal como concebida por Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), o gosto musical tende a se deteriorar, pela via do “engano das massas”, consumidoras passivas de verdadeiro lixo artístico padronizado, gerado não pelo genuíno artista, mas pela difusão amplificada de tudo que possa cair no gosto médio, influenciado pelos meios de comunicação de massas. Resultando daí a inclusão da música como item adicional do menu das tristezas da vida (invertendo a concepção schopenhaueriana), levando as almas desgarradas, não assimiladas pelo rebanho, a preferir, cada vez mais, o silêncio.

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