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Foto do escritorValdemir Pires

47. Tempo e amizade (Tempo - Livro I)



Poucos sentimentos são mais cantados que a amizade. Se concorda-se, sem restrições, que “O homem é um animal social” (Aristóteles 344-322 a.C.), não são muitas as objeções que se levantam contra a afirmativa de que sem amizades o indivíduo definha. Esta afirmativa é feita de uma maneira cristalina no seguinte excerto de “A Identidade” (1996), de Milan Kundera (1929-):

Lembrar-se do passado, carregá-lo sempre consigo, é talvez a condição necessária para conservar, como se diz, a integridade do seu eu. Para que o eu não se encolha, para que guarde seu volume, é preciso regar as lembranças como flores num vaso e essa rega exige um contato regular com as testemunhas do passado, quer dizer, com os amigos.


Nesta bela passagem, o escritor tcheco que se universalizou nos oferece a oportunidade de perceber, em profundidade, a estreita relação que há entre a amizade, a passagem do tempo e aquilo que, nesse passar, vamos nos tornando. A amizade aí aparece como arma contra a erosão da nossa personalidade, que ocorre quando aquilo que fomos (passado) se descola do que seguimos sendo e pretendemos vir a ser. Esse descolamento, que se dá pelo esquecimento da bagagem do passado em algum lugar a que não retornaremos, às vezes pode ser atraente (menos malas, mais leveza), mas nos amputa de pedaços nossos. Parte expressiva da nossa bagagem são lembranças (flores e também espinhos); os amigos são suportes vivos delas.

Com o tempo, as lembranças podem se apagar e, inevitavelmente esmaecem, a fricção dos acontecimentos, ao longo do tempo, concorrendo para isso. Elas são salvas pela cumplicidade e proximidade dos amigos, feito lubrificante que ameniza o atrito entre as partes que configuram passado, presente e futuro. Os encontros e as formas de compartilhamento da vida entre amigos nos mantêm como somos, a partir do lugar e do tempo de onde viemos. A falta deles nos lança num presente desenraizado que aponta para a deriva futura. Note-se o poder daquele momento para um cafezinho com prosa!

A amizade tem muitas facetas além das perceptíveis ao olhar de Kundera aqui resgatado, mas esta que ele destaca é, além de bela, preciosa, pois não nos deixa reduzir os amigos ao que, há muito, vêm sendo reduzidos: “...a amizade esvaziada de seu conteúdo de antigamente se transformou hoje num contrato de atenções recíprocas, em suma, num contrato de polidez” (ainda em “A Identidade”). O poeta mira a amizade polida quando canta:


“...se for preciso

Conte comigo, amigo, disponha

Lembre-se sempre que, mesmo modesta

Minha casa será sempre sua

Amigo” (Renato Teixeira, “Amizade Sincera”).


Contratos de polidez podem ser contraídos com muitas pessoas, e são desejáveis, mas não se confundem com a amizade a ser regada para preservar o eu, para reter as lembranças que nos constituem. No âmago da verdadeira amizade não está (como no contrato de polidez) uma troca de favores, gentilezas ou solidariedade (por mais valiosas que sejam), mas aquela manutenção do passado vivo em nós. Amizade, neste sentido, é história vivida em comum, história compartilhada. Não se contrai porque, num dado momento se deseja ou se decide contrair: é processual, é vivencial, leva tempo, contendo passagens alegres e tristes, solidariedades e omissões (perdoadas ou não), uniões e separações, concordâncias e discordâncias. Fala o poeta desta amizade:


Os verdadeiros amigos Do peito, de fé, os melhores amigos Não trazem dentro da boca Palavras fingidas ou falsas histórias Sabem entender o silêncio E manter a presença mesmo quando [ausentes Por isso mesmo, apesar de tão raros Não há nada melhor do que um grande Amigo, amigo, amigo” (Renato Teixeira, “Amizade Sincera”).


Impossível, portanto, amizades verdadeiras muito numerosas. Primeiro, porque a história de uma pessoa comum, como a maioria de nós, não oportuniza dividir quotidianamente acontecimentos de peso e força duradouros com grande número de outros, de modo a estreitar laços. Mesmo o herói e o grande homem, que têm essa oportunidade de estar com muita gente ao longo da vida, terminam, quando não sós, granjeando uns poucos amigos; ser admirado por um povo ou pelo contingente de liderados ou comandados, não resulta em ter conquistado amigos; um povo ou uma multidão podem ser suporte para epopeias e sagas, mas não para o sustento da dimensão afetiva de uma biografia.


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