Arte: Cartão ilustrado de Preghiera semplice, de Assis/Itália, presenteado ao autor por sua ex-aluna Geizi Vieira.
– Profissão?
– Do lar – respondeu a senhorinha, à minha frente, na fila, baixinho e meio constrangida. Fosse antigamente, teria respondido, talvez, “prendas domésticas”. Para não dizer “sem profissão”, que cuidar do lar não é visto como tal, a não ser que este cuidado esteja a cargo de uma mulher contratada para isso, a empregada doméstica (selvagemente tratada e remunerada, no mais das vezes).
Fosse, ali na fila, uma empregada doméstica, à pergunta “Profissão?” haveria uma resposta menos ambígua, mas ainda assim constrangedora: todos sabem tratar-se de uma escravidão a que se submete somente quem não tem alternativa.
O tempo de quem cuida das coisas da casa, para mantê-la habitável e em funcionamento (limpar e organizar os ambiente; lavar, passar e armazenar as roupas; fazer e servir as refeições e depois lavar e guardar os recipientes utilizados) é um tempo cuja aplicação resulta em benefícios essenciais à vida, ligados a comer, beber, vestir, repousar. É um tempo de extremo valor. Mas quando precificado, é desvalorizado. Quantas são as pessoas, no mundo, que fazem de sua vida este trabalho? Milhões e milhões. Mas somados seus salários (quando o trabalho é remunerado) e as partilhas de que se beneficiam (no caso de esposas e mães, por exemplo), o resultado é certamente vergonhoso.
No interior deste conjunto imenso de desvalorizadas (não cabe aqui o masculino) há um subconjunto de seres humanos ainda em pior situação: as mulheres casadas que “trabalham fora” como empregadas domésticas. Estas, à pergunta “Profissão?”, deveriam responder:
- Superexplorada, moça, superexplorada.
Esta mulher toma um ônibus às seis horas da manhã (portanto acordou às cinco, se tão tarde), para, entre outras coisas, deixar pronto o café para a família e viabilizar a ida das crianças à escola. Chega à casa da “patroa” às oito, lá preparando um café da manhã bem melhor do que deixou aos seus. E daí até às dezessete horas, limpa, lava, passa, cozinha etc. (às vezes é meio babá, também). Pega o ônibus em seguida e chega em casa às dezenove horas, onde começa tudo de novo, até no mínimo quase meia noite. Ganha mil e poucos reais e vale-transporte... Seu tempo não vale nada, ela, como pessoa, foi descartada.
Há uma “bonita” (reciclar é pop!) “profissão”, tanto masculina (predominantemente) que rivaliza com a da empregada doméstica em desvalorização remuneratória: a do “catador” de recicláveis “autônomo” (ou seja, não vinculado a empresa ou cooperativa). Ele passa o dia inteiro coletando e transportando latinhas, metais, papelões, vidros, plásticos etc., com uma carroça improvisada, que puxa com crescente dificuldade ao longo do dia (vai ficando mais pesada à medida em que vai coletando). Leva tudo para um comprador, que paga por peso. Dizer o preço praticado é como proferir um palavrão, então será evitado aqui.
Ultimamente, a ultradesvalorização do tempo do indivíduo que trabalha ficou escancarada na figura urbana típica da globalização desumanizante: os entregadores de aplicativos, em motos e bicicletas. Eles passaram a fazer parte da paisagem das grandes cidades, na qual o excesso de confortos de uns (os que compram e esperam a mercadoria chegar ao seu endereço) e a quase-escravização de outros (os entregadores), enquanto meia dúzia de empresários tem suas fortunas multiplicadas repentinamente.
A desvalorização do tempo dedicado a certas profissões ou atividades produtivas é um mecanismo de mercado que, segundo os defensores dessas engrenagens, deve conduzir os mal remunerados à busca de outras ocupações, que oferecem maiores salários. Se a pessoa não providencia essa transição, culpa dela: olha aí quanta gente fez isso – estudou, se qualificou e subiu na vida! Olha aí quantos se tornaram empreendedores para não ficar nessa lida degradante! A culpa de quem é superexplorado é dele mesmo. Mérito, minha gente, mérito!
Sim, é preciso pensar numa “economia de Francisco”, que desenvolva os meios sociais, culturais, políticos, institucionais e econômicos necessários para, pelo menos, reduzir a profundidade da injustiça praticada (via mercado ou por meio do arranjo familiar desrespeitoso à mulher) contra algumas profissões e atividades produtivas essenciais, sob a justificativa de que seus praticantes não têm suficiente mérito para serem melhor remunerados. Uma tal economia terá que ter, como seu fundamento e ponto de partida, um olhar atento para os que, somadas suas horas de trabalho dedicadas aos demais, ao longo de toda a sua vida, resultam em uma remuneração que não é suficiente sequer para a alimentação adequada de uma pessoa (muito menos de uma família). Uma tal economia certamente não poderá aceitar o mercado como único parâmetro definidor das remunerações (regulamentação de direitos trabalhistas e de salários mínimos), devendo combiná-las com políticas públicas compensatórias sustentadas por tributação progressiva, alternativa concebida há décadas e que o neoliberalismo ataca frontal e desumanamente.
Economia de Francisco, neste sentido, se tiver como limite a economia de mercado combinada com famílias convencionais, tem que partir de uma concepção de mercado e de família que em muito se distancia daquele defendido pelos neoliberais de plantão: deve ser uma economia em que os pobres contem e sejam respeitados, não por piedade, mas porque prestam ao mundo serviços sem os quais seríamos todos muito pobres, mesmo que fartamente endinheirados; em que o trabalho doméstico é dividido, não recaindo sobre um único feminino ombro; uma economia em que todo trabalho tem um valor, que é vida a serviço do bem-estar do outro, cuja prestação não pode ter como contrapartida a negação da vida do prestador.
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