Arte: Interpretação musical de Lígia Moscardini - "A leitura de ´Tempos misturados´ me trouxe a ideia de tempo como memória, como presente aliado ao passado, como esperança. De cara, lembrei de uma música da Martinha que eu queria aprender faz tempo´".
Para viver intensamente, preocupe-se apenas com o aqui-agora, entregue-se ao hoje, ao momento que ora transcorre. Desfaça-se do que não é real e presente, seja por já ter ido embora, seja por ainda não ter chegado. Só assim poderá apreciar, na pele, o calor carinhoso do sol ameno e, no rosto, a brisa que sopra brincando; sorver o fino perfume da flor, extasiar-se com o espetáculo de cores ao redor, deixar que a música penetre a alma; sentir cada passo do caminhar à sombra dos ipês...
Nada mais enganoso. Acorde!
A nenhum adulto pensante, dotado de memória e imaginação, é dada essa possibilidade de existir isolado no instante que transcorre. Vivemos sob permanentes evocações e acossados por infinitos desejos. O que neste momento estamos sendo, o somos sobre a base do que estivemos sendo antes, e impulsionados pelo que queremos vir a ser. O presente é amarrado pelo passado e puxado pelo futuro; os outros dois tempos disputam-no como num cabo-de-guerra. Como diz Fernando Pessoa (1888-1935), n´O livro do desassossego (1982), “Vivemos da memória, que é a imaginação do que morreu; da esperança, que é a visão do que não existe; do sonho, que é a figuração do que não pode existir”.
Assim, para nós, o hoje jamais é puro, é sempre misturado ao ontem e ao amanhã. O que fazemos hoje, aprendemos ontem; o que queremos mudar em nós, projetamos para o amanhã. E permeando tudo, os sonhos, que não cabem na vigília do hoje.
Quanto pesa o passado e quanto pesa o futuro sobre o presente de cada um? Isso depende de quão sonhador ou saudosista seja a pessoa. E isso depende, também, em boa medida, da idade de cada um: os mais velhos “carregam” mais passado, os mais novos, mais leves de pretérito, resistem menos aos apelos do futuro. Dessa maneira, passado e futuro se entrelaçam e se chocam na convivência entre moços e anciãos, crianças e adultos; mais facilmente se entrelaçam entre os da mesma idade. Não é à toa que Milan Kundera (1929-) afirma, em A cortina (2005), que “...ninguém compreenderá o outro sem compreender primeiro a idade dele”.
O diálogo entre diferentes idades é uma delicada arte, sempre sob risco de fracassar. Compartilhando o presente geográfico e cósmico-cronológico, jovens e velhos são, todavia, blocos relativamente sólidos de diferentes misturas individuais de presente com passado e futuro. Quanta vezes o jovem almeja o que o velho alerta que não convém, depois de já ter vivido? – “No ‘seu tempo’ era diferente.”, “Eu não farei do jeito que você fez”.
“Seu tempo”, “meu tempo” – de fato. Cada qual mergulhado numa atmosfera em que o presente é apenas um elemento, combinado com mais passado ou menos passado, mais futuro ou menos futuro, mais sonho ou menos sonho, ao gosto e no momento de cada um, definidos pela experiência vivida e pelos desejos acalentados, e de acordo com as possibilidades e circunstâncias de cada um.
Como, inevitavelmente, vivemos-com, por mais que possamos nos isolar, e, ainda, por nem todas as nossas relações serem por nós escolhidas ou selecionadas, outros blocos de passado-presente-futuro (outras pessoas) tocam o nosso, o tempo todo. Os tempos de uns se misturam aos tempos de outros, na convivência quotidiana. Ao lidar com isso, somos influenciados e influenciamos guinadas ao passado (saudosistas) e alçadas ao futuro (desideratistas). Nessas relações, às vezes buscamos o refúgio da caverna chamada passado, às vezes queremos correr na direção do campo aberto que é o futuro.
Na Babel dos tempos cruzando-se, o melhor de ser criança (“existência sem biografia”, disse uma vez Milan Kundera, em A identidade,1997), é que criança é quase um animal irracional, em processo de migrar para a outra condição (pensante); para a criança o presente é, mesmo, um quase-presente (não tem passado que pese e não tem aspirações que atormentam). E isso é muito bom, porque este presente é recheado de vontades, desejos, sonhos, buscas, descobertas, inquietações, em geral de fácil manejo.
Só a criança pode aceitar o conselho expresso na exortação “Viva o presente!”. Mas ela não precisa deste conselho, dona do tempo que é, sem saber. Tornando-se jovem e depois adulta, já terá um tanto de passado e estará em busca de um futuro – o conselho, então, não será ouvido, ainda que enfaticamente dado (teimosia!). Ao atingir a velhice, melhor é ouvir Hermann Hesse (1877-1962), em Elogio da velhice: “A idade não é pior que a juventude, do mesmo modo que Lao-Tsé não é pior que o Buda e o azul não é pior que o vermelho. A idade só perde valor quando quer fingir ser juventude”.
Pós-escrito: Nota para seguir pensando: “Diferente de um ‘rio que corre’, o tempo não se comporta da forma como o percebemos. Passado, presente e futuro existem simultaneamente, mas em dimensões diferentes. Esse é o fundamento por trás do conceito do ‘bloco universal’”, defendido pelo professor associado de filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Bradford Skow”.
Arte de Valdemir Pires
Arte: Valdemir Pires, rabiscos em caderneta, a nankin, sem título, 2019.
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