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Foto do escritorValdemir Pires

21. Dinheiro é que é tempo, Benjamin! (Tempo - Livro I)


Arte: Desenho de Helvio Tamoio/Paracatuzum.


“Tempo é dinheiro” — chucro bordão com ares de verdade eterna; como se o dinheiro existisse antes do tempo; como se o dinheiro, a partir de um certo momento, houvesse sido convertido em tempo, por obra e arte de algum gênio, cuja genialidade exigisse respeito e servisse para alertar os inoperantes, os vagabundos, os lentos e os procrastinadores: “Virem-se, mexam-se, ou ficarão sem meios para viver! Desperdicem tempo e estarão desperdiçando dinheiro e, por isso, não terão o que precisam para se sustentar!” Nada mais pragmático, nada mais americano, norte-americano.

Em contrapartida há outro dito muito popular que afirma: “Dinheiro não traz felicidade.” E não mesmo: manda trazerem. Manda buscar, diria Millôr Fernandes (1923-2012).

Brincadeira à parte, dinheiro proporciona felicidade, sem dúvida. Não todo tipo de felicidade, mas a maioria, dizem os economistas. Fica feliz quem pode comprar um prato de comida quando tem fome, uma bebida quando tem sede ou uma blusa quando sente frio. Felicidade, neste caso, é tida como acesso ao conforto ou fuga ao desconforto. O que não esgota, certamente, a ideia de felicidade, que inclui elementos que não se pode comprar. Sobre esses elementos são mudos os seguidores de Adam Smith (1723-1790).

Então tempo é dinheiro (apesar do incômodo) e dinheiro traz felicidade? Não se fala mais nisso e mãos-à-obra, em busca do “vil metal”? (Aliás, por que vil, se quem viu não achou que seja?)

Se dinheiro traz felicidade (mesmo que às vezes a prestação), quando em mãos ou disponível na conta ou no cartão, isso não ocorre num passe de mágica, pois obtê-lo pode trazer, a cavalo, infelicidades: trabalhos ingratos, jornadas extensas, patrões tiranos, risco de prisão (no caso dos menos afeitos à busca convencional da grana…) etc. etc. etc.

Portanto, dinheiro tanto traz felicidade (alegria, melhor dizendo), quanto traz infelicidade (tristeza). O que interessa é o resultado do balanço: muita alegria menos pouca tristeza, sobra bastante alegria; pouca alegria menos muita tristeza, abunda tristeza… Tudo é uma questão de relação custo-benefício, enfatizará uma corrente do pensamento econômico.

Se não resta dúvida de que Benjamin Franklin (1706-1790) estava certo ao dizer que tempo é dinheiro[1] (ou teria sido Martinho Lutero [1483-1546], como afirmam alguns?), não é menos certo, também, que isso não é tudo. Ele que aguente o choque que este questionamento pode provocar em sua mais famosa afirmativa!

O fato de existirem e serem aceitos (exigidos, na verdade) juros comprova a condição de dinheiro de que o tempo se reveste: os juros são pagos para que o dinheiro de alguém “passe um tempo” nas mãos de outrem; além disso, quando alguém atrasa o pagamento de uma dívida, amarga o acréscimo de juros de mora, uma punição (multa) pelo prolongamento não pactuado da “estadia” do dinheiro em bolso que não o do dono.

Por outro lado, é fato que o tempo existe desde sempre, e o dinheiro não. O dinheiro é uma invenção bem recente em comparação com o tempo de existência do planeta em que ocorre a circulação monetária (hoje em dia globalmente, mas só hoje em dia). Em algum momento, alguém ou alguns achou ou acharam um jeito de encapsular o tempo numa moeda e a ideia vingou. Mágica, pura mágica, mas não mistério. O estudo da História revela, ainda que muito permaneça velado, como a coisa aconteceu. Isso posto, embora dinheiro seja tempo – sempre –, nem sempre tempo é dinheiro. Portanto, o correto é inverter a ordem dos termos da frase de Franklin. Passa a ser “Dinheiro é tempo”. “Tempo é dinheiro” só é verdade, primeiro, a partir do momento em que o dinheiro passou a ser amplamente aceito e, segundo, somente quando o indivíduo usa o seu tempo dedicando-se a fazeres que geram bens ou serviços que proporcionam conforto para si ou para outros, trocando esses bens e serviços, ou parte deles, por dinheiro – seu tempo ocioso nunca será dinheiro.

Mais do que ser tempo, mais do que funcionar como uma cápsula de tempo, convencionado e aceito como tal, o dinheiro é tempo passado e tempo futuro.

Da pragmática América do Norte (Benjamin Franklin) à problemática América do Sul, para refletir sobre o dinheiro como tempo futuro:


Na rua Belgrano tomei um táxi. Insone, possesso, quase feliz, pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, já que qualquer moeda (…) é, a rigor, um repertório de futuros possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde nos arredores, pode ser uma música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café… (Jorge Luis Borges, O Zahir).


Sim, claro: o dinheiro permite o espraiamento intertemporal do acesso a bens e serviços, do acesso a múltiplas formas de conforto. O consumo pode se dar hoje, amanhã ou depois de amanhã, quando o dinheiro está no bolso: basta ir soltando-o e retendo-o conforme as conveniências. O dinheiro, embora não seja riqueza, propriamente, é poder de comando sobre riquezas. De posse deste poder, ficam acessíveis todas as formas de riqueza possíveis, ao longo do tempo, até o limite do poder de comando (que é poder de compra). Dessa forma, o dinheiro proporciona segurança diante do futuro. Daí o que John Maynard Keynes (1883-1946), um dos mais notáveis súditos da coroa britânica, denominou “preferência pela liquidez”: somente mediante recompensas palpáveis os indivíduos aceitam se afastar do dinheiro que possuem. O dinheiro é a ponte segura para o futuro e ninguém gosta da ideia de enfrentar a travessia correndo o risco de afogar-se num rio ou trilhar caminhos tortuosos, duros ou inseguros. É por isso e pela influência que tem na formação das expectativas e, portanto, na determinação dos investimentos, que o dinheiro é fundamental no funcionamento de uma economia monetária.

É da Europa continental, Alemanha, que virá o auxílio para o entendimento do dinheiro como tempo passado. O dinheiro, para Karl Marx (1818-1883), é uma mercadoria específica, que funciona como um véu monetário, que cobre as relações sociais (marcadas pela exploração) que os homens estabelecem entre si na luta diária pela obtenção dos meios materiais necessários à sua sobrevivência (ao contrário do que pensa Keynes, para o qual o dinheiro, como já dito, é determinante da produção). Nessas relações, organizadas pelas trocas e levadas a efeito nas fábricas, tudo é convertido em mercadoria, destinada à venda, inclusive a força de trabalho. Na produção mercantilizada, horas de trabalho dos operários migram para os bens produzidos, ou, em outras palavras, “cristalizam-se” no valor de troca que terá o que é produzido. Realizadas as vendas, os trabalhadores recebem seus salários e o capitalista, seu patrão, retém o lucro (gerado pela mais-valia, parte das horas de trabalho não pagas aos operários). Salários e lucros são, portanto, a soma dos valores monetários obtidos com a venda da produção, ou seja, resultado, quantificado pela moeda, da atividade que plasma horas de trabalho em objetos úteis. Com eles, com o dinheiro que lhes cai nas mãos, todos que participam da produção têm acesso à distribuição, desigual, do bolo de riqueza gerado. Sendo assim, cada unidade monetária, nas mãos dos trabalhadores, dos capitalistas ou de qualquer indivíduo, nada mais é do que a representação de uma fração de hora trabalhada, do dispêndio de energia muscular e cerebral aplicada à natureza para transformá-la de modo a gerar utilidades que proporcionam conforto.

Dinheiro, na acepção marxista, é trabalho já realizado, apto a comandar trabalhos futuros. Se um padeiro precisa reparar a parede de sua casa, pode fazê-lo com seu próprio trabalho (desde que tenha a habilidade necessária) ou pode comandar o trabalho profissional de um pedreiro (pagando-o com parte de seu salário de padeiro). O padeiro consome o pedreiro e, ao fazê-lo, poupa o dispêndio da própria energia muscular e cerebral num determinado tempo (pois essa energia já foi gasta na padaria). Trocar horas de trabalho, mesmo com a mediação monetária, nada mais é do que trocar tempos de vida e esforços, distintos na forma (habilidade de padeiro por habilidade de pedreiro), mas semelhantes na natureza (energia muscular e cerebral dispendida, destinação do tempo de vida a um fazer produtivo). Sendo que, por causa da mais-valia (exploração, apropriação de horas-trabalho não pagas), os capitalistas terminam acessando tempos de vida sem contrapartida. Tempo, então, em tais circunstâncias, transformado em dinheiro, é uma armadilha, da qual não consegue fugir a imensa maioria das pessoas que, entretanto, não é mais constituída de escravos, vive livre – não como o tamanduá, não como o urso panda, não como as baleias azuis. Mas, em compensação, devido à sua liberdade condicionada, os homens não estão ameaçados de extinção, como citados animais… pelo menos até que destruam o planeta em que habitam, e cujo giro em torno do sol determina o ritmo da passagem do tempo, tempo esse, astronômico, livre da conversão em dinheiro, a não ser que se materialize o sonho de Cecil Rhodes (1853-1902): “Se eu pudesse, anexaria os planetas.” (– Cecil, rapte um buraco negro, o resto ele faz para você. Ou por nós, se você se aproximar dele.)

– Dinheiro é que é tempo, Benjamin! Tempo é bem mais que dinheiro, seja lá o que o tempo for (e éter não é). Faça sol ou faça chuva, com ou sem relâmpagos e trovões. Na América do Sul, não empinamos pipa quando chove (mau tempo); e quando as empinamos, não pensamos em eletricidade. Por aqui, temos Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), que, faz tempo, disse, e não esquecemos:


Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo.



[1] Ele também disse: “A preguiça caminha tão lentamente que a pobreza depressa a alcança.”

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