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Foto do escritorValdemir Pires

22. Tempos barulhentos (Tempo - Livro I)


Arte: Foto de Giovanni Allegretti, silêncio profundo em Nuuk


Em “No teu deserto” (2009), Miguel Sousa Tavares (1952-) nos leva a uma acidentada viagem de jipe (um forte e desajeitado UMM) ao deserto do Saara. Uma aventura arriscada, em que o viajante se defronta com descomunais forças da natureza e tem a oportunidade de submergir num isolamento sem igual; no deserto, pelo vazio incomensurável, o ser vivo, como corpo, se dá conta de sua insignificância e de sua fragilidade e, enquanto alma, enfrenta a máxima solidão. Isolamento e silêncio – o deserto, ao mesmo tempo hostil e acolhedor, por isso fascinante.

Lugar de pouca gente e, portanto, de escassas possibilidades de ouvir o outro e falar-lhe; lugar onde a palavra falada não abunda, como nas cidades, por causa do excesso de cordas vocais prontas a dispará-la sem motivo. Lugar que, por isso mesmo, já não atrai:


As coisas mudaram muito, Cláudia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos de Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar, em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo, em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, ‘leves’, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão” (No teu deserto).


Se, para o sujeito em busca de si, o deserto (como o mar, a montanha, a neve e tudo que seja desmesurado) é acolhedor (embora amedrontador), é lugar de descobertas, revelações, iniciações e epifanias, para o indivíduo mais afeito às diversões e entretenimentos, ele é a mais perfeita face do horror: lugar onde o nada do eu não mais pode se diluir na multidão, e onde o vazio interior não consegue se disfarçar por meio de falas e diálogos fúteis que, em profusão descontrolada, poluem o mundo e descolorem as relações, pálidas de sensibilidade, afetividade e criatividade, imersas em lugares-comuns estabelecidos pela prática do falar sem pensar e sentir.

Avesso do deserto, a vida urbana predominante é um falar-ouvir incessante. É praticamente impossível fugir às falas, por indesejáveis que possam ser, quando aparelhos de TV, de som ambiente e automotivo, dispositivos de acesso a redes sociais etc. permanecem ligados o tempo todo, amplificando falas através das tecnologias de armazenamento, reprodução e disseminação, que fazem, de uma, milhões de bocas, com seus lábios e cordas vocais em ação. Publicidade, propaganda, marketing, influenciadores digitais etc. – babélica gritaria onipresente. Ruído universal incontrolável, que se junta à multidão de pessoas carentes querendo falar, falar, falar, falar, com nenhuma disposição para ouvir.

O tempo, nessa era do falar incessante, não mais flui, criando oportunidades para reflexões e diálogos suficientemente lentos para serem absorvidos; o tempo, nessa época de vozes que não calam por nada, vai sendo empurrado, aos solavancos, por chavões, bordões, lugares-comuns, enunciados padronizados, embutidos em mensagens disparadas com finalidades interesseiras travestidas de ternuras ou confortos. Toda a vida é contaminada por um palavrório vazio e por “conversas” de conteúdo insignificante, que poderiam, com vantagem, ser substituídas por silêncios.

As pessoas falam, falam, falam, não param de falar, para suprir o vazio, para espantar o tédio, como aquela “tia de Périgord” mencionada por Milan Kundera (1929-) em “A identidade” (1996):


O problema deles [de pessoas como a tia, que falam demais] é o tempo, fazer o tempo passar por si mesmo, sozinho, sem esforço da parte deles, sem que sejam obrigados, como andarilhos exaustos, a atravessá-lo, e é por essa razão que ela fala, porque as palavras que ela diz fazem o tempo se mover discretamente, ao passo que, quando sua boca fica fechada, o tempo se imobiliza, sai da obscuridade, enorme, pesado, e assusta minha pobre tia... (A identidade)


O falar vazio e o falar estratégico (com vistas a fazer valer um objetivo que não é o mesmo do que ouve) - falares coisificantes - invadem as horas e os dias, em todos os lugares. Eles emparedam o falar dialógico, humanizante, e, assim, desviam o ser do tempo, desnorteando-o na sua busca significadora, única capaz de evitar sua absorção pela massa despersonalizante e embrutecedora.

Vagamos, todos, desperdiçando o tempo e as falas, que são essências das nossas vidas. Melhor seria se nascêssemos com uma quantidade limitada de frases a proferir. Se assim fosse, “A fala de cada um devia ser dada em metros quando ele nascesse. Assim quem falasse à toa ia desperdiçando metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento”, desejava José J. Veiga (1915-1999), em “A hora dos ruminantes”(1966).


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