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Foto do escritorValdemir Pires

23. Tempo e pandemia (Tempo - Livro I)


Imagem: Valdemir Pires, Pandemia, colagem de recortes sobre papelão, 2020. Presenteado para Vivian de Moraes.


A vida humana é, em grande medida, a dedicação, ao longo do tempo e sob determinadas condições materiais e de poder, das energias (físicas, mentais, psíquicas e afetivas) a fazeres, deliberados ou não, que resultam em satisfação ou insatisfação, prazer ou dor, realizações ou frustrações. No mundo, com os outros, na maioria das vezes em espaços compartilhados, cada indivíduo desenvolve fazeres e estabelece relacionamentos que preenchem o seu tempo e o dos demais, de acordo com as possibilidades, oportunidades e arranjos.

Uma pandemia, como do novo coronavírus (Covid-19 ou Sars-Cov-2) é um evento que reduz as oportunidades de convivência, de interação, de trocas, de contatos, de relacionamentos interpessoais físicos. Dessa maneira, altera a vida, afeta a destinação do tempo e, portanto, modifica o teor tanto da existência humana quanto do próprio tempo.

Isolados ou com menores possibilidades de interação (não podendo abraçar, beijar, apertar as mãos, manter maior proximidade) somos distintos do que antes éramos. Fazemos coisas diferentes de quando nos relacionávamos sem essas barreiras, e também as fazemos de modos outros, que em alguns casos demoram mais e em outros, menos. Face-a-face, nossas conversas, agora, duram menos tempo (por medo de contágio) e a fala é atrapalhada pelo uso de máscaras; gastamos menos horas com deslocamentos para o trabalho com este sendo realizado em casa; a convivência familiar é outra (melhor ou pior, depende de uma série de fatores) com os filhos não indo à escola, passando mais tempo com os pais; as compras são realizadas com menor frequência e deixam de ser opção de lazer; o encontro com os amigos escasseia e até o vizinho parece ter se mudado para longe; encontros nos bares e paqueras em baladas não acontecem mais; espetáculos e esportes não podem concentrar público etc. Um “novo normal”, enfim, se impõe.

De início, sob efeito da novidade, fazeres antes raros são buscados (entre eles, por exemplo, ler, cozinhar, plantar, pintar, fazer exercícios físicos e até não fazer nada), passando a preencher o tempo que se tornou disponível pela redução dos fazeres quotidianos, principalmente os profissionais, de deslocamento e ligados a rituais coletivos (como cultos, atos públicos, comemorações). Mas, deixando de ser novidade, esses fazeres substitutos vão se revelando insuficientes para preencher o tempo e satisfazer às expectativas. O “antigo normal” passa, então a ser desejado.

A vida que se tinha, ou, em outras palavras, o modo de ocupar o tempo praticado antes do isolamento e do distanciamento imposto pela pandemia, começa a ser buscada, com relaxamento dos protocolos sanitários e volta à interação livre de restrições. O que antes parecia ganho de tempo (para fazer o que não se podia com as agendas e rotinas açambarcadas) passa a ser sentido com perda de tempo (devido ao impedimento de se fazer o que se pretende, mas é proibido ou proibitivo). Aceita-se até o aumento de risco para se “ter a vida de volta”.

Aumentando os contatos, porém, cresce o contágio, aceleradamente (ele ocorre em ritmo exponencial). É inevitável, está cientificamente e estatisticamente comprovado. É preciso desacelerar a vida em comum para evitar a expansão descontrolada do vírus; é preciso, pelo mesmo motivo, reduzir a ocupação dos espaços públicos e o trânsito neles. Tempo e espaço, assim, são comprimidos pela ameaça de adoecimento e morte em grande escala.

O medo do encurtamento do tempo de vida (por morte antecipada pela contração da Covid-19, onipresente) funciona como freio à tentação de desconsiderar as restrições temporais e espaciais que as autoridades terminam impondo (sem suficiente dotação de meios para isso). Esse medo e a obediência às autoridades são maiores entre os mais conscientes a respeito dos efeitos da doença e os que melhor compreendem a importância da profilaxia pessoal também para a sanidade de todos com quem convivem. Mas, a todos afeta o fato de que preservar a saúde física adotando restrições à convivência tem seus efeitos psicológicos nocivos: não é fácil manter-se em autoprisão e distante dos entes queridos, não é fácil congelar projetos e expectativas sem saber quando as restrições terminarão. Sem conseguir conceber o desdobramento da vida no futuro próximo, tudo parece se transformar num presente sem fim, que em muito se assemelha ao passado iniciado com as restrições, dando a impressão de que o tempo anterior a elas é um passado muito distante, do qual a saudade aperta.

A alternativa para os contatos físicos são os contatos virtuais. Felizmente as tecnologias da comunicação e da informação, conquistas recentes, vão muito além do correio, do telégrafo, do telex, do fax e do telefone, rádio e televisão. Elas asseguram, já faz algum tempo, conectividade permanente e praticamente integral, por meio da rede mundial de computadores e de telefones móveis individuais. E trata-se de conectividade fazendo uso da fala, da imagem e de arquivos de dados. Certos serviços (como transações financeiras, uma cesta de encaminhamentos na administração pública e alguns tipos de compras, por exemplo) já dispensavam a presença em locais pré-determinados e o contato físico, havia tempos; nunca foi tão fácil realizar encontros e reuniões sem a necessidade de deslocamento dos participantes: cada um no seu canto, onde quer que esteja, pode “estar” com os outros por meio de dispositivos simples e baratos para lives e meetings; as conversas por whatsapp e Skype desbancaram o já prosaico telefone, com vantagens também de custos.

Há, de fato, um aumento de eficiência (economia de tempo e de recursos materiais, como escritórios, veículos, combustíveis, passagens, estadias etc.) com o uso das tecnologias da comunicação e da informação que propiciam o contato virtual em vez do físico, não só para fins profissionais ou de estudos, mas elas carregam consigo a desvantagem de uma frieza e um distanciamento psicológico que são cansativos, desgastantes, perturbadores, cujo impacto ainda é cedo para avaliar, assim como gaps comunicacionais ainda não totalmente conhecidos nem compreendido, decorrentes da ausência do olho-no-olho e da fração gestual da comunicação humana. Seriam esses problemas apenas residuais e tendentes ao desaparecimento com o hábito? Ou eles afetam tão profundamente as dimensões temporal e espacial das relações humanas que chega a estar no horizonte um novo homem? Não seria este, “naturalmente”, mais acelerado e desterritorilizado que o atual? Mas não seria o caso de aprender, com a pandemia, que o necessário está sendo, já há algum tempo, desacelerar, para o bem das relações sociais e do meio ambiente?

Este retorno à caverna, agora high-tech, que a pandemia está impondo, bem poderia ser um freio oportuno para repensarmos, menos afoitos por produtividade e riquezas materiais, nossa relação com o tempo, com o espaço (aí incluídos solos e subsolos, oceanos, rios, vegetais, animais), com nossas próprias consciências e uns com os outros - outros, que, em grande quantidade, inclui pessoas e famílias que ainda estão aquém das condições de conforto de uma minoria (de que somos parte) que tem o privilégio de poder tratar do momento atual dramático como aqui, nesta reflexão; outros para quem a tecnologia ainda não resolveu sequer a fome, a submoradia, o subemprego, a exclusão social, que também vêm se acelerando por causa da própria pandemia.


Arte de Valdemir Pires

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