Arte: Foto de Regina Monteiro.
“Presença” (1987), Mario Quintana (1906-1994):
É preciso que asaudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso asaudade para eu te sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
Que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!
A saudade desenhando as “linhas perfeitas” e o “perfil exato” daquela a quem o poeta evoca, sua ausência exalando aromas florais... A saudade de que o poeta lança mão para senti-la em si. A saudade, que retrata imperfeitamente, sem capturar a multiplicidade e a imprevisibilidade de quem pode ressurgir diante do poeta saudoso... e obrigá-lo a fechar os olhos para juntar a lembrança à presença.
Saudade, dor diferente, que se sente querendo, por trazer de volta quem ou o que, desejado, não mais está ou não mais existe; tênue fio que liga o passado ao presente, realiza a magia da imaterial volta no tempo.
Saudade, anzol que, com a isca de um objeto, fisga de volta um bem querer até então adormecido pelo esquecimento autoimposto, como Stoner, personagem de John Williams (1922-1994) em seu livro de mesmo nome, de 1965, lembrando-se de Katherine Driscol, a quem amou intensamente e teve que abandonar e nunca mais ver, ao folhear o livro dela recém-publicado,:
“Era um bom trabalho: a prosa era elegante, e a paixão, disfarçada pela frieza e pela lucidez de sua inteligência. Stoner se deu conta de que era exatamente ela que ele via no que lia, e se maravilhava de quanto ainda a sentia próxima. De repente, era como se Katherine estivesse na sala ao lado dele, e ele a tivesse deixado só momentos antes. Sentiu uma espécie de formigamento nos dedos, como se a estivesse tocando.
Saudade, sentimento trazido pela lembrança, pela recordação, pela evocação, graças à memória, conjunto de arquivos mentais que configuram o eu, no seu devir, do começo ao fim.
Saudade, caprichosa artimanha da memória que se recusa a buscar no passado o que foi triste. E que, às vezes, ao permitir o olhar em retrospectiva, leva à descoberta de que algo que, então, pareceu triste, de fato não era, reelaborando o passado.
Saudade, mais que nostalgia, banzo das terras distantes por onde andou o coração, ali deitando raízes profundas.
Saudade, que não imagina o que ainda não foi escrito nas linhas do tempo, mas reedita o já escrito a cada nova leitura, adornando o que seu portador mais sente ter perdido; não pinta nem esculpe, mas recupera e restaura como nenhum artista.
Sofre mais quem tem mais saudades? Sofre, porque viveu mais ou mais intensamente. Melhor, então, sofrer?
É possível ter saudade junto com alguém? Sim, mas nunca perfeitamente. Se um pergunta ao outro, muito a sério, os porquês da saudade de um momento compartilhado, vem logo à tona o quanto é difícil viver exatamente juntos.
Viver de saudades é estacionar no passado? Todo exagero faz desandar. Mas viver sem saudades é como existir feito árvore sem raízes: morta, lenha seca, que o tempo queima sem resistência, sem fumaça, sem aroma.
Afinal, como evitar as saudades? “Na verdade não temos saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós seu objeto”, diz bem Eduardo Lourenço – 1923-2020).
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