Arte: Gelo (por Vivian de Moraes, https://viviandemoraes.blogspot.com/ )
Sendo uma só para cada um de nós, a vida é uma porção limitada de tempo, diante de inúmeras destinações possíveis; portanto, no seu decorrer, é, em verdade, um conjunto de escolhas, feitas um tanto “no escuro”, pois ninguém sabe a duração da própria vida, para, dentro dela, fazer ou deixar de fazer isto ou aquilo com segurança e garantia de conclusão satisfatória. Ninguém sabe, também, exatamente, o resultado final de suas escolhas, no momento que as faz. E apesar disso, muitas delas são irreversíveis: não é possível voltar no tempo para refazê-las ou alterar suas consequências.
Escolhas miúdas são feitas a todo instante, tão simples que sequer mobilizam verdadeiramente a atenção (a não ser em situações especiais): sentar ou ficar em pé em situações de espera breve, comer isto e não aquilo que é oferecido, dormir com a barba longa abaixo ou acima da coberta, escovar ou não os dentes após uma refeição (por mais que a dúvida não devesse existir por razões de saúde bucal), olhar ou não as estrelas à noite.
E há escolhas difíceis ou críticas, escolhas definitivas, escolhas estratégicas, escolhas que, enfim, de fato delineiam o que será ou deixará de ser a vida de uma pessoa, como a da atividade profissional que exercerá, se constituirá família ou não, se seguirá os rumos conforme seu próprio desígnio ou se curvar-se-á aos ditames alheios (e a quais).
Algumas escolhas chegam a ser atrozes, como as chamadas “escolhas de Sofia”, que remetem à situação vivida pela mulher judia que foi obrigada a decidir, na fila do campo de concentração nazista, qual de seus dois filhos permaneceria com ela e qual seria incinerado. Anna Karênina, personagem universal de Liev Tolstói (1828-1910), em romance de mesmo nome (de 1877), vive a dramaticidade de uma escolha dessa natureza: para passar a viver com o Conde Vronsky, é obrigada a deixar seu filho amado com o pai, Alexey Karenin, de quem se separa.
Todas as escolhas importantes são feitas considerando-se, em diferentes proporções e com distintos pesos, o livre arbítrio, influências de terceiros (aí incluídas as pressões e determinantes sociais e culturais específicas de tempo e lugar) e as circunstâncias pessoais e históricas. É um sonho, uma hipótese lírica, que o livre arbítrio consiga prevalecer sempre. E a este sonho se soma o desejo de “ter sorte na vida”, manter-se ao abrigo do infortúnio e de mãos dadas com a boa aventurança. Aqueles para quem o cavalo passa selado na hora em que o cavaleiro se prepara para montar e galopar, rumo ao sucesso e à vitória, são poucos. Os de virtude, diante da fortuna, como dizia Nicolau Maquiavel (1469-1527), são os poucos e incomuns que mudam o mundo ao seu redor, num raio maior ou menor conforme o alcance de seus feitos.
Há uma escolha inicial de cada um, a partir do momento em que pode decidir sobre si, imperceptível como escolha, que é continuar vivendo, em vez de dar cabo da própria vida; escolha resultante de força para persistir ou de medo de executar o necessário para desistir. Cometer suicídio, embora não pareça, é uma escolha, extrema e rara. Tão rara que leva à suspeita de que, no mais das vezes, a vida vale a pena. A bela Anna Karênina, -- voltando a ela -- terminou lançando-se debaixo de um trem, por não suportar o que sua vida se tornou depois de sua “escolha de Sofia”: ela tinha se transformado numa viva-morta, alguém cuja dor da morte física se tornou menor que a dor do fim da vontade de viver (morte em vida).
Uma vez tendo “decidido” seguir vivendo, cada um de nós corre o risco de “viver morto”, como Anna Karênina, ou seja, manter-se respirando, comendo, bebendo, dormindo, realizando as necessidades físicas e fisiológicas típicas de um organismo e cumprindo obrigações sociais. Alguns caem em depressão, outros se tornam bobos alegres.
“Viver vivo”, que é viver de fato, é mais do que evitar a falência corporal; é alimentar o espírito, sustentar a alma, aquelas “instâncias” da vida onde é possível dar-lhe algum sentido. Sentido que é tão mais rico quanto mais o que vem de dentro do indivíduo (depois de ter sido semeado e cultivado, ou enquanto isso é feito) consegue realizar trocas com o que está fora dele: o mundo, povoado pelos outros.
.“Viver vivo” é interagir construindo e construindo-se no rumo, na direção e ao ritmo possível, na busca de sonhos e na tentativa de realizar desejos, que, ao longo do tempo, vão se modificando e se entrecruzando, no delineamento de biografias e na urdidura de momentos da História comum a todos.
“Viver vivo” é tomar o tempo disponível nas próprias mãos (lutando para que não seja totalmente sugado por outros), fazendo escolhas durante a vida e negociando-as com os demais. Viver assim é lançar-se à aventura do incerto, em busca do incógnito, com atitude de decifrador apaixonado que, ao mesmo tempo que aprecia o rio que corre, nele mergulha e acerca dele se questiona, assim como se questiona a respeito do curso da própria vida, enquanto a sente, com cuidado, mas sem temor. Viver assim é cumprir o destino, contraditoriamente indeterminado, do tempo que é dado a cada um - dádiva que o indivíduo aceita quando e até quando consegue seguir fazendo escolhas.
O maior medo, na vida, portanto, não deve ser o medo da inevitável morte, mas o medo de não conseguir contornar a armadilha de viver morto, por isso deixando em branco o tempo de duração da própria existência ou passagem pelo mundo. Não se trata de desejar a glória, mas simplesmente de aceitar o leque de escolhas possíveis e arriscar-se a ir em frente, acertando e errando, ao longo do tempo, de tal modo que, no final, se tenha na boca um gosto tanto de mel quanto de fel, sinal indelével de “vida vivida”, de vida escolhida ou de morte enfrentada e várias vezes vencida.
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