Arte: Foto de Amanda Micheli Mariano de Mello
Há momentos na vida, acontecimentos, cenas e paisagens, pessoas e objetos, que, uma vez ocorridos ou postos junto ou diante de nós, gostaríamos de nunca mais nos separar deles, retê-los, guardá-los para sempre, como se pudéssemos congelar o tempo de sua ocorrência ou encontro, para que eles não nos escapem, sigam conosco rumo ao tempo que virá. Da mesma maneira nos ocorre a vontade, às vezes, de reter uma imagem nossa, para mais tarde lembrarmos como éramos, o que fazíamos, com quem estávamos, por onde andávamos etc. A esta necessidade ou desejo atenderam, por muito tempo, os artistas, com seus elaborados e tantas vezes admiráveis retratos, paisagens, naturezas mortas etc., socorrendo nossa pobre memória no esforço de reter imagens; socorrendo, ainda mais, nossa quase-incapacidade de transmitir imagens por meio de palavras – péssimos pincéis, por mais habilidoso que seja o “pintor”.
A invenção da fotografia veio ao nosso auxílio nessa ânsia por reter (tanto quanto possível) o que passa e fica no passado, guardar (tanto quanto possível) o que o tempo engole; a fotografia nos ajuda em nossa tentativa de reter (tanto quanto possível) o efêmero. Tanto quanto possível porque nos proporciona acesso ao que captam os olhos, excluindo o que nos chega por meio dos outros sentidos (audição, paladar, olfato, tato).
Dirá Roland Barthes (1915-1980), com sua singular e característica sensibilidade, em “A câmara clara” (1980):
O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente (...); ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana...
Ninguém que tenha algum dia lido ou que venha a ler este breve excerto apreciará uma fotografia da mesma maneira que fazia antes desta leitura. Aqui Barthes flagra sintética e fulgurantemente o que a fotografia nos permitiu conquistar: o congelamento instantâneo (em frações de segundos, graças à rapidez do obturador das máquinas) de uma ocorrência no tempo.
A imagem que o fotógrafo capta é “real”, não padece dos defeitos do olhar do pintor (fragmentário e moroso) para ser obtida. A foto, de fato, agarra e prende aquilo que a objetiva alcança. Seu congelamento do tempo é completo, ainda que a partir de uma escolha de ângulos e composições de quem aciona o disparador: “Click”.
Com o advento das câmeras filmadoras, novo passo foi dado ao congelamento do tempo: a tecnologia dos fotogramas sucessivamente projetados agregou às imagens o movimento. Até aí foi o cinema mudo (em preto e branco), rapidamente acrescido das cores e do som, levando a “sétima arte” (acrescentada, depois da invenção dos irmãos Lumièri[1], à música, às artes cênicas, à pintura, à escultura, à arquitetura e à literatura) a um novo patamar: a retenção alcança o som e reduz a três os sentidos que ficam de fora do congelamento possível: paladar, olfato e tato.
A filmagem possibilita, ainda, atualmente, a ilusão do tempo correndo para trás (bastando inverter a direção da projeção), mais rápido ou mais lentamente. Imagens em câmera lenta permitem acompanhar detidamente os movimentos, resultando numa sensação de frenagem do relógio (ou aceleração, caso se deseje o contrário – bastando “apertar o botão” correspondente, de avanço); a técnica de time lapse, por sua vez, possibilita acompanhar em pouco tempo (segundos, por exemplo) algo que ocorre, na realidade, com maior duração (horas, por exemplo): assim, comprime-se todo o processo de evolução do desabrochar de uma flor ou do nascer e do pôr do sol numa sequência acelerada de poucos minutos. Ou seja, atualmente podemos não só capturar e congelar instantes: somos, além disso, capazes de dar-lhes tratamentos tais (na captação ou na projeção) que, ao vê-los, conseguimos efeitos impossíveis sem os filmes (agora substituídos pelos arquivos digitais, com as vantagens e desvantagens correspondentes da fotografia digital).
A tecnologia, porém, ainda é restrita na tentativa de congelar momentos ou instantes, pois muitos destes, vividos ou presenciados com nossos cinco sentidos (principalmente aqueles mais envolventes e intensos, que afetam profundamente nossos sentimentos) serão para sempre só nossos, somente daqueles que os viveram. As tentativas de “mostrá-los”, dá-los a conhecer a outros, agora ou no futuro, serão sempre frustradas. Nesse tocante, ainda que as palavras sejam um pincel ruim, como já dito, para congelar eventos temporais, somente elas são capazes de se arvorar no terreno em que visão, audição, olfato, paladar e tato estejam presentes. A literatura, ao descrever e narrar, fotografa e filma (já com som, se quiser), recupera o aroma, identifica o gosto, revela a textura – ela é a mais potente filmadora já inventada. Dentro dela, a poesia fotografa sentimentos, misturando os cinco sentidos e até se encaminhando rumo a um sexto.
[1]August Marie Lumière (1862-1954) e Louis Nicholas Lumière (1864-1948), aos quais é atribuída a invenção do cinematógrafo.
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