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  • Foto do escritorValdemir Pires

36. Tempo alienado (Tempo - Livro I)

Atualizado: 14 de mai. de 2021


Arte: A ciência das coisas, de e por Nádia Virgínia, poeta e cronista.


Alienado: transferido, cedido, vendido. Aquilo que já não é meu, de que perdi a posse, o domínio, o controle, por ter dado, trocado ou por me ter sido retirado.

Também o nosso tempo sofre alienação, com ou sem nosso consentimento.

De fato, a maior porção diária (um terço ou mais) do tempo das pessoas adultas com capacidade laboral é destinada ao mercado de trabalho. Elas alienam (no sentido de vender) seu tempo em troca de remunerações (salários, ordenados, honorários, ganhos de negócios), que lhes permitirão, depois, adquirir os bens e serviços necessários à sua subsistência e de sua família. Enquanto trabalham para terceiros, os empregados ou contratados não estão disponíveis para si mesmos, a não ser para as atividades fisiológicas necessárias para continuarem vivos – não são impedidos, porque é impossível e contraproducente, de respirar ou de (e neste caso sob um grau de controle) ingerir nutrientes e expelir rejeitos alimentares.

Outro terço ou um pouco mais do tempo de cada um, a natureza requisita sem perdoar a quem a desobedece: serve para dormir e comer e, mediante esforço alocativo e criatividade, para a atividade que possibilita o que já se chamou de “reprodução da força de trabalho”, ou a "fabricação" de novos proletários.

Mais um naco do tempo é tragado pelos esforços necessários à manutenção de si no mundo: cuidados e higiene pessoais, manutenção e limpeza da moradia, administração das posses (ou da falta delas).

Sobra pouco tempo não alienado e não comprometido, então. Chega a ser desesperador fazer as contas. E só não bate o desespero (que até poderia se tornar revolucionário) porque, ao fim e ao cabo, a maioria, com o tempo que sobra, vai em busca de... de? De alienar espontaneamente seu tempo “livre”. Como assim, alienar não é perder? Vejamos.

O tempo alienado no mercado de trabalho não é perdido, não totalmente. Uma parte, sim, é perdida porque fica para o patrão, como Karl Marx (1818-1883) já demonstrou sem possibilidade lógica de desmentido: o capital abocanha a mais-valia, aquela porção de trabalho realizada pelo trabalhador que vai além do necessário à sustentação da sua vida material e que dá origem ao lucro, no interior do processo de produção e não fora dele (como acontecia no capitalismo comercial, em que o lucro provinha de comprar barato para vender caro). A outra parte é devolvida como salário, com o qual um trabalhador compra o trabalho do outro, cada qual localizado num ponto da divisão do trabalho e, portando, um dependendo do outro – via trocas – para obter o que não produz. A alienação mercantil do tempo é, portanto, parcial.

Cumprido o expediente, o trabalhador está diante do tempo... do tempo? Do tempo cujo destino não é controlado pelo patrão. Está em suas mãos, é seu. Escorrida aquela parte necessária aos cuidados de si e de sua casa, sobra o tempo para viver conforme se queira. Ufa! Até que enfim.

Chegou a hora de usufruir o próprio tempo. O que dele se faz, então? Incrível! Será espontaneamente alienado. Será gasto, pela maioria, basicamente com entretenimento, ou seja, com o envolvimento em atividades físicas ou do espírito que distanciam o indivíduo de si, impedindo-o de encontrar-se consigo mesmo. Busca-se, com essas atividades, esquecer a vida dura, repousar o corpo maltratado pelo trabalho. Funciona assim: durante o expediente, o tempo mata; fora dele, a vingança: matar o tempo. Mas aí é que está a armadilha: o tempo que temos não é um troço abstrato, o tempo que temos é a vida que temos, portanto, matar o tempo que é nosso é, sem tirar nem por, nos matarmos. Ainda que não seja uma morte física a que nos impomos, neste caso: é a morte da nossa individualidade, do nosso eu (nos tornamos um joguete dócil nas atividades que obstruem o enfrentamento de nossas próprias contradições ao estar no mundo). Isso porque o entretenimento que costuma ser abundante e convidativo leva o indivíduo ao esquecimento de si, a deixar de ter-se para entreter-se. E este entretenimento é o que o oferece a chamada indústria cultural: aquela fonte em profusão de mercadorias destinadas a alimentar a produção capitalista a partir da exploração do “mercado do espírito”, reduzindo-o a consumidor de lugares-comuns, de visões culturais estereotipadas, comodamente absorvidas, sem exigir reações elaboradas.

A alienação do tempo no mercado do entretenimento se diferencia da alienação no mercado de trabalho por dois fatores fundamentais. Primeiro, no mercado de trabalho troca-se capacidade produtiva por remuneração, enquanto que no mercado da indústria cultural troca-se uma parte do salário (e também de outras formas de remuneração) por bugigangas consumidas por prazer (filmes idiotas, músicas estúpidas, livros emburrecedores, festas esvaziantes, lazeres de tipo massificado e massificante, enfim, que não são ócio desalienante ou criativo nem atividades culturais tendentes a oferecer algum tipo de iluminação e esclarecimento); no mercado de trabalho está em jogo o corpo e no da indústria cultural, o espírito. Segundo, no mercado de trabalho a alienação é forçada (sem trabalhar não é possível sustentar a vida material, morre-se de fome), enquanto que na indústria cultural ela é manipulada: o indivíduo, sem que perceba (porque mergulhado no comportamento de massa, imitativo, de rebanho) abre mão de sua visão de mundo ou da possibilidade de ter uma, para mergulhar no entretenimento, na farra agradável de fugir para longe de tudo que possa colocá-lo, de olhos abertos, diante do espelho que à pergunta “Existe alguém mais feliz do que eu no meu tempo livre?”, responde: “Então você acha que é feliz, nesse tempo? E acha, mesmo que ele é livre?”

Seres alienados, escravos durante o dia e zumbis durante a noite. Doidos para serem zumbis nos finais de semana inteiros. Finais de semana que são denominados períodos de DSR - descanso semanal remunerado. Períodos para descansar, para recompor as forças necessárias à retomada da atividade produtiva com a máxima produtividade e o mínimo questionamento.

Está bem, assim? Merece esta forma de “viver” o nome de vida? É esta uma forma razoável e desejável de alocar o tempo? Questões antigas, não é? Estão respondidas? Consistentemente? Estão respondidas satisfatoriamente para as necessidades, interesses, vontades e desejos de todos ou a da maioria? Que tal pensar nisso, com ajuda da arte e da filosofia, desviando do escolho da literatura de autoajuda e do famigerado coaching, esses potentes lixos da indústria cultural?


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