Arte: Amor em cores estranhas, D. Theuer.
O tempo é enigmático, o amor também. Mas o tempo é de natureza imutável e infinita, ao contrário do amor. De John Williams (1922-1994), em “Stoner” (1965):
Quando era muito jovem, Stoner pensara no amor como um estado absoluto da existência que um homem, se tivesse sorte, poderia ter o privilégio de vivenciar. No entanto, em sua maturidade, ele o rejeitara como o paraíso de uma religião falsa, que se devia contemplar com irônico ceticismo, desprezo suave e maduro, além de uma nostalgia embaraçada. Agora, em sua meia-idade, ele começava a entender que não era nem um estado de graça nem uma ilusão. Via-o como uma parte do devir humano, uma condição inventada e modificada momento a momento e dia após dia, pela vontade, pela inteligência e pelo coração.
O amor é o mais intenso dos afetos e é mais forte que seu oposto, o ódio. E o que mais? Ah, muitas, variadas e contraditórias coisas...
Está acima da amizade, assim como o ódio em relação à inimizade.
São tantas as formas de amar e os jeitos de manifestar o amor, que identificar este sentimento e sua manifestação concreta nem sempre é fácil. Existem amores inconfessáveis, amores platônicos, amores que se calam por toda uma vida (contidos, reprimidos, represados), ao contrário das paixões violentas, que se lançam contra quaisquer barreiras – e também são um tipo de amor.
Amor faz parte da condição humana e é também arte: inventamos os nossos amores, eles não são pura atração física, hormonalmente engendrada, como nos outros animais.
Todo amor tem uma história. Não amamos hoje como amávamos na Idade Antiga ou nos tempos dos castelos medievais; entretanto é a essência desse afeto que nos mantém como espécie duradoura, enquanto nos alegra e entristece, amplia e consome, prende e liberta. É esse amor, agora romântico, que leva aos extremos nossas contradições individuais fundadas na busca de um eu profundo, que jamais é completo só, um eu que depende de um nós no mínimo de dois; nós que se torna, também, um conjunto de laços de difícil feitura e complicado desenlace.
Amor e tempo, afeto extremo e duração periclitante – um ao lado do outro, afetando-se mutuamente. Vivido com amor, o tempo é suave e intenso, colorido, cálido; sem amor, o tempo é áspero, frouxo, incolor, frio. Sem amor a vida é uma presença sempre diante de uma falta, uma incompletude, uma pergunta sem resposta, uma busca sem motivo convincente, um erro, um tropeço.
Com o passar do tempo, os amores duradouros (tão raros) se transformam, adquirem feições de que a simples paixão nem pode suspeitar e, por isso, grita por atenção – que acaba recebendo, muitas vezes, mas não do jeito que reivindica, geralmente.
O amor encantado, irresistível, quase irracional – de todos o mais cantado, o amor poético, de Romeu e Julieta, Heloísa e Abelardo, Dante e Beatriz – que a tudo enfrenta, levando até à morte se negado; este é o mais conhecido e desejado de todos. Avassalador. Coloca “borboletas no estômago”, dirão os místicos; hormonal, apenas, afirmarão os cientistas desmancha-prazeres. Amor erao, do grego eros, do latim amare (paixão, possessão), do sânscrito camati. Pode durar um verão ou um pouco mais.
Se persiste, pode chegar a amor filéo, do grego filos, do latim diligere, do sânscrito lubiati – tornar seu. Amor de querer bem, para além de uma atração. E nada impede que um amor inicie filéo, completando-se com erao, ou não.
Completo, o amor é agapao, do grego ágape (amar a satisfação do desejo) e stergo (proteger, como o pai). Amor-vinho: leva tempo, exige cuidados para se criar e guardar, para se revelar por completo, em textura, cor, odor, sabor, ideia. Envolve gozo e dor, degustar (gozo) aquilo que se semeou, cultivou, espremeu, esperou (dor) – sempre com zelo e expectativa.
A amar também se aprende, mesmo quando simples erao, pois os corpos intuem, mas a mente, o espírito e a alma elaboram – como, no amar, são ao menos duas elaborações distintas, não se encontram sem mútua e complexa busca. Aprender requer tempo e dedicação: orgué (pulsão, impulso, animação excepcional) em comum, felicidade que une física e emocionalmente a dois não se dá, conquista-se. Mas quando, afinal, se aprende? Não há resposta, cada caso é um caso; por exemplo, de volta a Stoner:
Em seu quadragésimo terceiro ano, William Stoner aprendeu o que outros, muito mais jovens que ele, haviam aprendido antes dele: que a pessoa que se ama no começo não é a pessoa que enfim se ama, e que o amor não é um fim, mas um processo através do qual uma pessoa experimenta conhecer outra.
Quando, por incapacidade afetiva ou deliberação (filosófica ou por conveniência circunstancial) não se busca e nem se aprende o amor filéo ou stergo, passa-se, com facilidade ou não, de um erao a outro, como o colibri, de uma flor a outra. É o amor líquido, à Zigmunt Bauman (1925-2017). Cada um dos amantes tem seu tempo e o quer para si, apenas, preenchendo-o com os próprios prazeres, não raro o outro sendo objeto para atingir este fim, de comum acordo ou não. “Quem ama cuida” não faz mais sentido e, aparentemente, isso não traz consequências. Não acontecem “lutos amorosos”, como definidos por Roland Barthes (1915-1980) em “Fragmentos de um discurso amoroso” (1977):
No luto real, é a ‘prova de realidade’ que mostra que o objeto amado não existe mais. No luto amoroso o objeto não está nem morto, nem distante. Sou eu quem decido que sua imagem deve morrer (e ele talvez nem saiba disso). Durante todo o tempo de duração desse estranho luto, terei que suportar duas infelicidades contrárias: sofrer com a presença do outro (continuando a me ferir à sua revelia) e ficar triste com a sua morte (pelo menos tal como eu o amava).
Nesse luto, Barthes suspeita que se perde uma linguagem: “Acabaram os ‘Eu te amo’”. Já na linha de Bauman, eles não existem mais ou se tornaram muito raros: não se diz mais, verdadeiramente, “Eu te amo”. O amor morreu. Mas qual? Orgué, à Wilhelm Reich (1897-1957) – união completa entre físico e psíquico? Filéo, Stergo? Ou será que somente, feliz ou infelizmente, caminhamos para um tipo de eros sábio (ou logos apaixonado)?
Enquanto refletimos, ouçamos, cautelosos, de lá de longe, no tempo, Ovídio (43 a.C-?), em “A arte de amar” (1 a.C-1):
“Nós, o coro dos poetas, sabemos amar mais que qualquer dos outros; fazemos que chegue até muito longe a fama da beleza que nos cativou.”
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