Arte: Tédio, Banda Pluggit.
Pelo seu poder explicativo e simplicidade, o chamado mito da caverna é um dos argumentos filosóficos mais conhecidos em todo o mundo. Platão (427-347 a.C.) o desenvolveu em “A República” (aproximadamente 380 a.C.) com o intuito de discutir o conhecimento, a compreensão do mundo real, a distinção entre aquilo que é e o que não é, embora pareça ser. A alegoria consiste na situação em que um homem, dentro de uma caverna escura, toma como real o que, de fora, é projetado pela luz na parede interna; uma vez fora da caverna, dá-se conta, aturdido e assustado, de que o mundo é outra coisa, muito distinta do que achava que fosse sem sair da gruta.
A partir da alegoria da caverna ficam claras as limitações de um conhecimento adquirido sem contato com o mundo e a vida concretos, limitando-se a percepção às sombras do real. O mundo em que se vive e a vida que se leva determinam o que se conhece, o que se sabe. Da caverna se vê o mundo, fora dela é possível vivê-lo e, portanto, também vê-lo de distinta e mais profunda maneira.
A experiência – estar no mundo absorvendo as noções acerca de sua constituição, funcionamento e mistérios – é o meio pelo qual o homem, fazendo uso do seu tempo, articula as ideias que fazem dele um bicho que aprende e transcende.
Se permanecer dentro da caverna o tempo todo, o indivíduo permanecerá limitado ao conhecimento de simulacros. Mas se dela sair, é provável que jamais retorne, a não ser para dormir, se abrigar, esconder-se e, ainda assim, com a consciência do que é o mundo, a caverna sendo uma pequena parte dele.
Homem x- tempo 1- mundo x à Homem xx- tempo 2 – mundo xx: com o passar do tempo, o homem que experiencia o mundo se faz um novo homem e com isso também o mundo se transforma. É diferente para um animal: Gato x – tempo 1 – mundo x à Gato x – tempo 2 – mundo x.
O homem descobre, aprende, ainda que dentro da caverna, não só olhando para fora, podendo fazê-lo com mais intensidade e proveito dela saindo (mesmo retornando). Com a invenção da escrita, veio a ser possível também aprender sem sair da caverna, desde que iluminada; sem lançar mão de tempo-experiência, com o tempo-leitura o aprendizado acontece. A leitura, então, aparece como uma saída virtual da caverna-mundo empírico; ler se equipara a sair do mundo fisicamente tangível e observável e aturdir-se com um mundo ainda mais repleto de novidades, parte delas encontráveis no mundo físico (e observadas a partir de diferentes ângulos) e parte só imaginadas, inventadas. Não foi à toa que a humanidade mergulhou na leitura, produziu e produz uma profusão de livros.
O século XX trouxe a novidade da internet, que, a princípio, parecia uma nova janela aberta na caverna-mundo empírico, possibilitando ampliar e intensificar os olhares em busca do real, do verdadeiro, da vida plena de consciência; prometia, nessa direção, superar as páginas impressas em quantidade e qualidade. E, de fato, esta tecnologia fabulosa tem potencial para isso. Ele está, evidentemente, sendo explorado, mas uma outra vertente parece desenvolver-se mais rapidamente: as da alta conectividade, viciante, para fins, em sua maioria, inúteis – as redes sociais.
Nas ruas, avenidas, praças, jardins, rodoviárias, aeroportos, consultórios, comércios, em todos os locais públicos ou de espera, enfim, para não acrescentar salas de espetáculos teatrais ou musicais, cinemas, quartos de motel ou de casais em suas residências, assentos de automóveis em movimento (inclusive os dos motoristas em ação) etc. o que se observa são pessoas praticamente o tempo todo com sua atenção absorvida pelas telas iluminadas dos telefones móveis. Não é mais possível “aproveitar o tempo” no ônibus ou no avião para travar conhecimento com novas pessoas ou conversar com as já conhecidas que porventura estejam juntas no trajeto – o que reduz o universo de indivíduos concretos a partir do qual se vivencia o mundo. Ficou difícil, à mesa, em casa, aproveitar o tempo para comemorar conquistas, articular fazeres ou resolver pendências e problemas do dia-a-dia com os familiares – perto do celular, a televisão tornou-se quase nada na dissolução da convivência familiar (pelo menos na TV todos viam juntos a mesma programação). Nas salas de aula, chega a ser covarde a concorrência por atenção entre o professor que fala e o aparelhinho escondido entre a tábua da carteira e a parte superior da coxa dos alunos – debate de ideias expostas na aula expositiva para aprofundamento deixou de existir. A conversa de botequim esmaeceu: o que ali se fala não desperta tanto interesse como a as mensagens de whatsapp ou as postagens do Facebook, do Instragram e similares, que chegam às dezenas durante um happy-hour.
As redes sociais roubaram o tempo de carne-convivência das pessoas (que continham olhares, abraços, tapas, beliscões, empurrões, exclamações, efusões etc.), que agora o aplicam em trocas virtuais rápidas e frias, em muito suplantando, nesse tocante, o quase finado telefone (cuja ligação, hoje em dia, chega a ter o valor, o peso e a importância que antes tinha uma visita).
As videoconferências, outra conquista do final do século XX, por sua vez, completam o quadro geral de proximidade-distante que caracteriza o novo tipo de relacionamento humano em vigor. Reuniões, conferências, bancas já não exigem mais deslocamentos e presenças físicas: tudo se resolve mantendo-se as (e apesar das) distâncias; as conversas nos intervalos e os eventos paralelos que costumavam marcar e valorizar esses eventos desapareceram. Além disso, não se vai mais ao cinema (onde se encontrava muita gente, às vezes até em filas enormes, chocolates, pipocas e refrigerantes em mãos, casais felizes pelo tempo juntos nesta aventura) e nem mesmo à locadora de filmes (com o atendimento personalizado do atendente e a possiblidade de dicas de outros clientes) – tudo se resolve acessando canais de streaming, em casa.
Aliada a uma mentalidade individualista, a tendência ao isolamento individual numa grande porção de fazeres humanos (antes propiciadores de convivência quotidiana carnal), trazida pela interação mediada por máquinas e programas computacionais, criou a caverna de Platão pós-platônica: qualquer local em que se esteja, de posse de um celular com acesso à internet (possível em qualquer ponto) tornou-se um recinto fechado à mente conectada, a partir do qual se pode ver através da janela virtual da internet. O curioso é que, invertendo a alegoria de Platão, a caverna, agora, é o mundo real, a partir do qual as sombras, do mundo virtual, dão a impressão de realidade; os túneis de informações e de interação interpessoal mediada por máquinas e linguagem de máquinas subjacentes são acessados aleatoriamente, a qualquer momento e em qualquer lugar, com uma sensação de amplificação da vivência, mas, na verdade, consubstanciando-se em perda de tempo, desperdício de vida, amputação de vivências que poderiam estar ocorrendo. As horas passam e a vida estaciona, fica estagnada, sem o “benefício” do tédio, que provoca a angústia, capaz de impulsionar à ação e ao encontro com o outro.
Tendo se alterado a forma de viver e sentir o mundo e o outro, as redes sociais viciantes modificaram também o modo como o tempo é sentido, utilizado, destinado: cada dia mais, um contingente maior de seres humanos “investe” seu tempo em atividades virtuais que os distanciam da interação física e criam uma falsa sensação de realidade e conhecimento. As habilidades de análise e de convivência estão passando por uma profunda modificação que permite dizer que o que está em curso é a configuração de um novo tipo de ser humano, ultra-individualista, altamente acomodado (tudo querendo resolver ao toque de uma tela), despreparado para decisões e fazeres coletivos, sem a sensibilidade propiciada pela vivência carnal quotidiana – em suma, um homem da caverna platônica, à luz do dia (sem deixar-se iluminar por ela).
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