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Foto do escritorValdemir Pires

2. Bate o tempo (Tempo - Livro I)


Arte: Interpretação do fragmento por Chapéu (Antonio Chapéu da Silva), ator piracicabano, do Grupo Andaime.



Arte: Foto de Alexandre China, Le Passe-muraille (do romance de Marcel Aymé), Montmarte, Paris, 2013.



Batidas na porta da frente

É o tempo

Eu bebo um pouquinho

Pra ter argumento[1]


O tempo chega, bate à porta. O poeta sabe que é ele, o tempo. Estava à espera, pelo jeito, bebida à mão. Sabe que deverá ter argumento, e que argumento sóbrio não basta, talvez nem surja – nem para ele, um domador de palavras e frases.

O poeta bebe. Não espera que o tempo aceite um copo, sóbrio como o ponteiro do relógio da catedral. Por isso, um só copo, pela metade, sobre a mesa, no canto da sala em que o poeta está, só, descalço, de brancos e leves trajes.

O poeta se levanta, abre a porta, o tempo entra, senta, sem pedir licença nem dizer palavra.

Uns goles depois, com versos, o poeta conversa com o tempo. Que sorte a dele! Conversa com o tempo sem poesia é o que de mais ríspido e assustador deve existir: naufrágio – o tempo a exigir, como sempre faz, e a pessoa a se esquivar, cada vez mais encurralada; grita por socorro, que não vem, não é possível; a pessoa a esbravejar contra o abandono, o tempo a nem dar ouvidos. Calado, também o tempo é um poeta, maldito.

O tempo, fiscal e cobrador. Ninguém lhe escapa. Quando muito, desvia, foge, sabendo da captura próxima. Se bem que lhe lacram portas e janelas as crianças pequenas e os loucos – não adianta ele bater, não o deixam entrar. Em compensação, também não podem sair…

As batidas do tempo são na porta da frente. Ele se anuncia sem temor, alheio à vergonha, avesso à timidez, sabe que a porta será aberta, sabe que a fuga pelos fundos ou janelas é ato inútil. Ele nunca bate à porta dos fundos: sua chegada, ainda que íntima, é pública.

O tempo chega, bate à porta... Como assim? Ele não esteve sempre presente? Ele não atravessaria as paredes, se quisesse? Por que aguarda que a porta seja aberta, por que não vai logo entrando? Será sua visita respeitosa privilégio – ou infortúnio – do poeta?

Difícil crer, ou imaginar, que o tempo não esteja sempre presente – agora ou no passado e no futuro também –

, que fique fora da casa, batendo à porta antes de entrar. Que casa é essa, onde o poeta se esconde do tempo?

Talvez seja a casa do dono do tempo, que o enxota para fora, como a um cão, quando lhe apraz. Ainda assim, o cão ladraria, lá fora, a mais não poder… Mas, dono do tempo?

Dono do tempo? Sim! Assim nos sentimos “a maior parte do tempo”. Até que nos damos conta de que o contrário é o que se dá: o dono, de tudo e de todos, é o tempo; e ele é quem manda, e expulsa quem deseja expulsar, quando bem quer. E impõe urgência:


Hoje o tempo voa, amor

Escorre pelas mãos

Mesmo sem se sentir

Não há tempo que volte, amor

Vamos viver tudo que há pra viver

Vamos nos permitir[2]


Ninguém, quando criança, é dono do tempo; jovem, também não, mas o menino e o rapaz não se preocupam com isso. O adulto já começa a sentir as amarras do tempo, a obedecer às suas ordens. Ao envelhecer, é capturado pelo tempo, irreversivelmente; pensa, então, que o tempo está chegando ao fim, quando, de fato, ele, futuro finado, é que está para desaparecer… É o tempo abatendo sua vítima? Ou é o tempo escapando, escorrendo pelas mãos?

Seja como for, aconteça o que acontecer, o tempo está sempre presente. Em tudo. Ao mesmo tempo fora e dentro da casa, essa imagem arquitetônica que o poeta criou para obrigar o tempo a bater à porta, anunciar-se antes de entrar, respeitando a Poesia-morada, abrigo único diante da finitude prosaica.

Porta adentro, o poeta joga no seu campo e se faz íntimo do tempo:


Recordo um amor que perdi

Ele ri

Diz que somos iguais

Se eu notei

Pois não sabe ficar

E eu também não sei

E gira em volta de mim

Sussurra que apaga os caminhos

Que amores terminam no escuro sozinhos [3]


Ah, que sina!



[1] Resposta ao tempo, Aldir Blanc e Cristóvão Bastos, 1998. [2]Tempos Modernos, Lulu Santos, 1982. [3] Resposta ao tempo, Aldir Blanc e Cristóvão Bastos, 1998.

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