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Foto do escritorValdemir Pires

9. O tempo como passado, presente e futuro (Tempo - Livro I)


Arte: Foto de Manuel Reis.


O tempo é uma invenção humana e, ao mesmo tempo, um atributo do homem. Immanuel Kant (1724-1804) dirá do tempo (assim como do espaço) que ele é um “juízo a priori”, uma racionalização, uma ideia que o indivíduo “lança” sobre o mundo (objetos, outros seres, relações) para que o mundo lhe retorne compreensível e possa ser vivenciado. Já que “organiza” a existência humana, passa a integrá-la, torna-se seu atributo.

A ideia de tempo não se refere apenas ao tic-tac do relógio, ao passar ininterrupto dos dias e noites. Vai além. Concebem-se frações de tempo, enquadrando-se os acontecimentos em conjuntos menores e maiores que os dias. Estes são fracionados em turnos (manhã, tarde, noite), horas, minutos, segundos etc. até o infinitamente pequeno/curto. Assim como são agrupados em semanas, meses, semestres, anos, séculos etc. até o infinitamente grande/longo. Tudo parecendo tão normal, regular, quotidiano, que passa por natural, ou seja, não é visto como invenção humana, mas como dado da natureza, cabendo aos relógios, calendários e agendas apenas “obedecer”, de modo organizado e controlável, ao avançar das frações de tempo.

Um outro tipo de fracionamento do tempo, não cronométrico, propriamente, mas, digamos, analítico-existencial, é o que o organiza em passado, presente e futuro, nesta ordem irreversível (pelo menos até que se prove a possibilidade de volta ao passado e/ou ida ao futuro, que, segundo alguns físicos, não é uma impossibilidade). Procedimento tão fascinante, que permite ao homem “ter” história, tanto pessoal (biografia) como coletiva (História). Fato que leva Paul Valéry (1871-1945) a acreditar que passado e futuro são as duas maiores invenções da humanidade; e Martin Heidegger (1889-1976) a dedicar toda sua vida à reflexão sobre ser e tempo, revolucionando o pensamento filosófico.

O homem é o único ser que, primeiro, não vive no presente (pelo menos não só no presente) e, segundo, é denso em memória (carrega em si a lembrança do seu passado, individual e coletivo) e em projeto (vislumbra e tenta controlar o dia de amanhã). Este é, provavelmente, um dos mais importantes atributos humanos, que nos distinguem dos seres vivos irracionais.

Uma passagem curta de “A idade da razão” (1945), de Jean-Paul Sarte (1905-1980) ajuda a compreender como, na perspectiva existencialista, a vida enquanto vivida é, ao mesmo tempo, passado, presente e futuro:


“Uma vida”, pensou Mathieu, “é feita com futuro, como os corpos são feitos com vácuo”. Baixou a cabeça. Pensava na própria vida. O futuro penetrara-a até a medula. Tudo estava nela em suspenso, em sursis. Os dias mais recuados de sua infância, o dia em que dissera: “Serei livre”, o dia em que dissera: “Serei grande”, apareciam-lhe, ainda agora, com seu futuro particular, como um pequenino céu pessoal e bem redondo em cima eles, e esse futuro era ele, ele tal e qual era agora, cansado e amadurecido. Tinham direitos sobre ele e através de todo aquele tempo decorrido mantinham suas exigências, e ele tinha amiúde remorsos abafantes, porque o seu presente negligente e cético era o velho futuro dos dias do passado. Era ele que eles tinham esperado vinte anos, era dele, desse homem cansado, que uma criança dura exigira a realização de suas esperanças; dependia dele que os juramentos infantis permanecessem infantis para sempre, ou se tornassem os primeiros sinais do destino. Seu passado sofria sem cessar os retoques do presente; cada dia vivido destruía um pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo dia tinha um novo futuro; de espera em espera, de futuro em futuro, a vida de Mathieu deslizava docemente... em direção a quê?


Por mais fascinantemente organizada e funcional que seja a vida numa colmeia ou num formigueiro, não há uma história das formigas ou das abelhas, até porque, essa história se repetiria até o infinito, numa enfadonha mesmice, cujo registro, ainda que fosse possível, seria desnecessário. Por outro lado, por mais desorganizada e tantas vezes disfuncional que seja a vida dos homens na Terra, eles necessitam de uma História, ou, antes, fazem-na: vivem modificando-se (individual e coletivamente) e inventando, descobrindo, inovando em quase tudo. Fazem isso de maneiras não previsíveis, não regulares. Neste “reinventar-se” permanente, criam, destroem, conservam e, por isso, têm necessidade (não apenas pragmática, mas também poética) de uma percepção de seu processo evolutivo (História como ciência).

Um único ser humano, por mais simplório que seja, não decide, age, reage, relaciona-se, insiste ou desiste considerando apenas o momento atual (presente); ele pensa e age, sempre, em decorrência de algo já acontecido (no passado) e visando algo que que deseja ou pretende evitar (no futuro). Destarte, tudo acontece ao homem, não no presente – este não existe puro, pois o que há, concretamente, desde o conceber de um acontecimento até sua ocorrência, é o passado-presente-futuro (assim, tempos ligados entre si).

Além da conexão inevitável entre passado-presente-futuro no ser, pensar e agir de cada indivíduo, há também a interdependência entre os indivíduos ao longo de suas existências na História. Ninguém chega ao presente vindo de um passado despovoado, em que tudo que decidiu e fez tornou-se o seu presente tal como previamente concebido; ninguém chega também ao futuro vendo realizados todos os seus desejos, como se não houvessem outros a opor-lhe resistência ou exercer interferência sobre seus projetos e fazeres. A vida humana é relacional, ontologicamente. Por isso, o passado, o presente e o futuro de cada um dependem do passado, do presente e do futuro de todos os demais (de uns, mais; de outros menos – conforme as proximidades e as oportunidades). E isso é difícil, arriscado, tantas vezes doloroso, tantas vezes horroroso, mas é, sobretudo, fascinante. Tão fascinante, que se eu tivesse que escolher, numa eventual segunda existência, optaria por ser eu, humano, de novo, mesmo que me oferecessem ser um gato, um leão, um colibri, um hipopótamo, uma orquídea, uma montanha ou um diamante.


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