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Foto do escritorValdemir Pires

3.O tempo e os relógios (Tempo - Livro I)


Arte: Foto de Alexandre China, Torre do Relógio do Museu d'Orsay, Paris, 2013.


Sem ar não podemos viver, não sendo isso um problema – estamos dentro da atmosfera. Sem tempo, também não vivemos – a vida acontece no tempo, é uma duração. Mas o ar disponível nos basta enquanto vivemos; o tempo, não, pois nunca sabemos quanto dele poderá ser nosso e, pelo fato de ser destinado a diferentes fins, é escasso. Por isso não medimos (por enquanto, não) o ar que consumimos, ao passo que controlamos permanentemente o passar do tempo. E inventamos e sofisticamos, cada vez mais, utensílios e máquinas para esta finalidade.

É bem verdade que não deve ter sido sempre assim, mas é fato inconteste que longe vão os dias em que a Humanidade “inventou” o tempo medido e passou a se munir de variados artefatos aferidores de sua passagem (os horológios, ou relógios, em português menos arcaico).

Sim, faz muito tempo que nos equipamos para monitorar o “escoamento” das horas, a fim de organizar e disciplinar o ritmo da vida quotidiana; faz menos tempo que passamos a contar também a passagem das frações de horas (o ponteiro de minutos é mais recente e o de segundos, mais ainda). Quanto mais precioso (leia-se produtivo) o tempo foi se tornando, mais atenção foi sendo dada a cada pedacinho dessa sua passagem.

Os babilônios, por volta de 5.000 a.C. já organizavam o dia em 24 horas, 12 diurnas, divididas em duas partes pelo sol a pino, o meio-dia. Os egípcios, em 3.500 a.C. já utilizavam o relógio de sol. Há notícia de relógio de sol sofisticado em 740 a.C. Era uma vareta na vertical sobre uma superfície plana e fixa, projetando sua sombra à medida em que o sol ia da aurora ao ocaso. A vareta, com ponteiro em ângulo (gnômon) foi um aperfeiçoamento, ao que parece, árabe.

Medir o correr do tempo sem depender da luz solar foi um passo dado com a invenção das ampulhetas (passagem de uma quantidade fixa de areia de um compartimento a outro de um recipiente de vidro com um gargalo no meio) e das clepsidras (relógio de água, inventado pelos chineses e aperfeiçoado pelos gregos antigos, já com ponteiro).

A engenhosidade tem sido uma constante no esforço humano de colocar o tempo sob controle. Combinada com a religiosidade da Idade Média, levou aos belos relógios-torres das igrejas, para disciplinar os momentos de oração e de ofícios. Em 1335, em Milão, um desses relógios já badalava as horas em praça pública. Dois deles ainda existem, um em Salisbury (de 1386) e outro em Rouen (de 1389). O de Londres, construído no mesmo século, já anunciava a passagem de quartos de hora.

No fim do século XIV os relógios de torre, em tamanho reduzido, adentraram as casas mais bem dotadas financeiramente – relógios de parede, alguns adornados, sendo o relógio-cuco um modo gracioso de lembrar que o tempo passa. Com o uso da mola para mover as engrenagens, aperfeiçoamento implementado, por volta de 1504, por Peter Henlein (1485-1542), os relógios em formato de caixa se tornaram portáteis (relógios de bolso, então apelidados ovo de Nuremberg, cidade do inventor), com ponteiros de horas (o ponteiro de minutos aguardaria até 1670 para fracionar ainda mais os dias); esta máquinas eram raras e finamente trabalhadas e, por isso, eram objeto de ostentação dos nobres.

Com a compreensão dos movimentos pendulares proporcionada por Galileu Galilei (1564-1642), no século XVI, os relógios avançaram em precisão (batidas regulares), graças à aplicação feita por Christian Huygens (1629-1695), em 1656, e pela inttodução do pêndulo longo, por William Clement (1638-1704), em 1670 – daí o tic-tac como som da passagem do tempo?

O relógio mecânico à base de engrenagens e outras peças metálicas (algumas delas de rubi – de 17 a 33 –, funcionando como mancais, para reduzir o desgaste), ao qual se “dava corda” enrolando uma mola espiral, foi um formidável avanço tecnológico. Ele era pendurado a uma corrente e portado no bolso, em muitos casos como pequena joia. Em 1814, Abraham Louis Breguet (1747-1823), confeccionou um relógio de pulso para a irmã de Napoleão Bonaparte (1769-1821), Carolina Murat (1782-1839); e a partir de 1868, Antoni Patek (1812-1877) e Adrien Philippe (1815-1894) tornaram-no peça de moda feminina. Na Primeira Guerra Mundial (1939-1945) o relógio de pulso funcionou como necessidade dos combatentes nos campos de batalha, tornando-se masculinos; mas foi o uso civil para cronometrar os voos com as máquinas inventadas por Santos Dumont que levou o relógio mecânico ao pulso dos homens, Louis Cartier (1875-1942) tendo sido o responsável por isso, juntamente com o próprio Santos Dumont (1873-1932). Em 1904 foram fabricados os primeiros Cartier-Santos, comercializados em larga escala a partir de 1911.

O relógio mecânico moderno, com seu intuitivo formato circular, caixa e pulseira simples, barato, deixou de ser prioritariamente ornamento e objeto de moda ao longo do século XX, graças à produção em escala e ampla aceitação (até mesmo objeto de desejo). Ele é resistente, inclusive à água (water resist até certa profundidade), à ferrugem (stainless steel) e ao erro. Nota-se, com esta evolução, que o relógio, que começou sendo colocado nas torres de igreja e passou a ser fixado nas paredes das residências e outros prédios, chegou ao pulso das pessoas comuns, homens e mulheres, nas ruas; quem não tinha um, até adquirir o seu, sempre encontrava alguém para perguntar “Por favor, que horas são?”

Mais baratos, mais precisos (embora já o fossem muito, graças ao quartzo que passara a incorporá-los) e fáceis de “ler” se tornaram os relógios, ainda carregados no pulso esquerdo, a partir do momento em que a indústria passou a fabricar os modelos digitais, já concebidos, em 1883, por Josef Benedikt Pallweber (1858-1921), em que o maquinário metálico é substituído por circuitos eletrônicos e os ponteiros, por números, num pequeno painel de cristal líquido. Neste modelo, as funções calendário (presente no formato de janela nos relógios analógicos, informando dia do mês e da semana), cronômetro, despertador (que já foi um modelo específico de relógio, inicialmente de cabeceira, depois incorporado ao rádio-relógio), taquímetro, temporizador ou timer, fases da lua, hora mundial foram incorporadas com muita facilidade, sendo também de consulta simplificada. No final do século XX, esta máquina migrou outra vez: do pulso para o aparelho telefônico móvel, o celular, com a vantagem de que sua atualização agora pode contar com informações recebidas dos transmissores externos (antenas e satélites): ninguém mais precisa “acertar o relógio”. Se bem que, de fato, hoje ninguém mais precisa de um relógio, como aparelho específico, pois ele está em todos os lugares, além do telefone: no computador (fixo ou portátil), nos aparelhos de TV, no toca-músicas (digital) do carro, no velocímetro da bicicleta etc. Não só o tempo é onipresente, como sempre foi, mas também os medidores de sua passagem, ultimamente.

Na medida em que aconteceram avanços científicos e tecnológicos, estes se fizeram sentir quase que imediatamente nos instrumentos utilizados para monitorar a passagem do tempo. E hoje, devido a necessidades intrínsecas da ciência, foram criados os relógios atômicos, de absoluta precisão (maior do que a obtida com os tourbillions inseridos nos relógios mecânicos), demandados por numerosos experimentos em diversas áreas do conhecimento. Chegou o tempo em que a famosa precisão dos relógios suíços já não basta.

O que falta, depois de tanto avanço na medição do tempo, mormente ao longo do século XX, é compreender o que é o tempo e qual o seu significado e sentido para nossas vidas finitas e plus-desejantes. Nisso, há que se concordar com Jorge Luis Borges (1899-1986): “Disse a mim mesmo repetidas vezes que não existe outro enigma senão o tempo, essa infinita urdidura do ontem, do hoje, do futuro, do sempre, do nunca” (fala de personagem do conto There are more things, de 1975).

O mais misterioso, no tempo, é a “presença” permanente de algo que, objetivamente, não existe: nada nem ninguém está, como o tempo, em todos os momentos e lugares. As máquinas inventadas para “detectá-lo”, porém, não “agarram” nada, apenas suspeitam. E essa suspeita de sua presença basta para se impor a tudo que fazemos. O tempo é. Nós, por nosso turno, apenas somos no tempo.

Submissos, existimos contando o tempo, em tudo tendo-o por referência, relógios sempre à vista. A vida é uma sucessão de tic-tacs ou números em evolução, sem retrocesso. Na literatura, a partir de certo momento (a vida já acelerada, no ambiente urbano), o relógio também se impôs. “Nos romances de Dostoievski, o relógio não para de marcar a hora: ´Eram mais ou menos nove horas da manhã´ é a primeira frase de O idiota; nesse momento, por pura coincidência (...), três personagens que nunca tinham se avistado se encontram num compartimento de trem: Mychkine, Rogojine, Lebedev; (...). São onze horas, Mychkine toca a campainha na casa do general Eántchine; é meio-dia, ele almoça com a mulher do general e suas três filhas...”, lembra Milan Kundera (1929-) em seu A cortina (2005).

É de outro russo, o imenso Tchekhov (1860-1904), um conto em que o tempo, graças à existência do relógio de parede (o qual todos consultam para saber a hora, não tendo cada um seu próprio relógio de pulso), é trapaceado. Em Trapaceiros à força – Historinha de ano-novo, são onze e dez da noite e Diadetchkin está ansioso para comer e beber, mas Malacha lhe diz para esperar a hora (momento da passagem para o ano-novo, meia noite); então ele vai ao relógio e empurra o ponteiro dez minutos para a frente. Pouco depois, Gricha adianta mais sete minutos, movido pela mesma necessidade; em seguida é a vez de Kólia, que “rouba cinco minutos à eternidade” (diz o narrador), sucedido por Kopáisky, que “encurta o ano velho em seis minutos”. Tudo em vão: desesperada por não ter tudo pronto na cozinha, Malacha atrasa o relógio em vinte minutos:

“— Podem esperar! – diz a patroa, e corre para a cozinha.”

Os que vivem sob a tirania do relógio-ponto, entretanto, não têm a seu dispor a oportunidade dos personagens tchekhovianos, de trapacear os ponteiros, pois estes são vigiados pelos seus patrões mais do que os criminosos encarcerados. Em suas vidas, o despertador residencial os obriga a acordar em horário que lhes permita chegar ao trabalho a tempo de “picar o cartão”.



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