Arte: Foto de Leonardo Oliveira.
O mito, como explicação não conceitual, enraizada em percepções encantadas das coisas e dos fenômenos, ajuda a compreender o mistério que é o tempo, sem a pretensão de enquadrá-lo em uma teoria que se seja científica. Lançando mão de medo e desejo, reverência e repulsa, maravilha e horror, no esforço de encontrar um abrigo diante da ameaça do desconhecido, a noção mitológica da vida, do mundo, das relações e das coisas está em toda parte, alcançando desde as crendices até as religiões institucionalizadas, dialogando com a beleza, no campo da arte.
Na mitologia grega, tempo é tanto Cronos como Kairós.
Cronos, o mais jovem dos titãs, é também o rei destes, representado como um velho. É filho de Urano (cujo poder de governante do universo invejava e a quem castrou a pedido da mãe, Gaia). Com Reia, sua irmã, é o pai de Zeus e de seus dois irmãos (Hades e Poseidon) e três irmãs (Héstia, Deméter e Hera).
Cronos, que engolia todos os filhos logo ao nascerem, por medo de ser destronado por eles, é o tempo que tudo devora. Mas devora o que ele próprio cria. É o tempo do ciclo interminável da vida, senhor da vida e da morte. É o tempo sequencial, que passa, que se CRONOmetra. Tempo que castra e açambarca. Tempo que de tudo faz passado.
Kairós, o filho mais jovem de Zeus (o único filho que Cronos não devorou, graças às artimanhas de Gaia) e de Tique (deusa da fortuna) é o tempo como momento oportuno (tempo que enseja o legado); tempo como momento em que algo especial acontece (o caos é evitado e a felicidade é sentida); é o tempo em potencial, que pode ser aproveitado, tênue elo para o futuro dadivoso. É representado tendo cabelos somente na parte frontal da cabeça, dando a ideia de que só pode ser agarrado e mantido preso quando vem (de frente) e nunca quando já foi (pelas costas). É o tempo que, uma vez perdido, perdido para sempre. Faz lembrar o ditado popular “Cavalo selado só passa uma vez”. É o tempo que, uma vez aproveitado, permite voar; mas não carrega sem ser cativado.
Cronos é perverso e cobiçoso, cioso de seu poder. Kairós é despreocupado e despretensioso, inclusive vive nu; anda rápido, tendo asas nas costas e nos pés. Cronos é inevitável, Kairós é desejável. Lidar com o tempo tendo em mente esses mitos eternos (enquanto durarmos) é, de algum modo, viver melhor, ciente das limitações humanas, mas também de suas possibilidades, elas próprias desafiadoras.
Sem dúvida, as imagens do tempo oferecidas por Cronos e Kairós são esclarecedoras para lidar sabiamente com a vida, enquanto tempo durante o qual existimos e procuramos sobreviver ao caos, almejando alguma felicidade. As possibilidades de exploração desses mitos para se obter raciocínios orientadores são múltiplas. Mas, como disse Italo Calvino (1923-1985), em “Seis propostas para o próximo milênio” (1988):
...toda interpretação empobrece o mito e o sufoca: não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre o seu significado sem nunca sair de sua linguagem imagística.
Calvino que, aliás, defende a rapidez como um de seus valores preferidos a serem preservados pela literatura do século XXI (não percamos tempo nas narrativas!). Calvino que, infelizmente, morreu atropelado antes de terminar de escrever as mencionadas “Seis propostas” – na verdade cinco: além de rapidez, leveza, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Ficou faltando o valor representado pela consistência.
(Ficamos por aqui! Breves, para sermos rápidos. E também para não desperdiçar a oportunidade de estarmos sendo lidos: leitor interessado só passa uma vez... e tem asas).
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