Arte: Foto de Tika Tiritili, 2020.
Arte: De passagem, composição de Fábio "The Byrd" e Cléder-X.
Fosse o homem imortal, outra seria a vida. Vida não seria o contrário de morte se inexistisse esta. A vida, livre da morte se manifestaria de um modo completamente diferente de como, de fato, acontece.
Em As Intermitências da Morte (2005), primeira página, José Saramago (1922-2010), bem humorado, imagina:
No dia seguinte, ninguém morreu [porque a Morte se recusou a fazer o seu serviço, já que todos a amaldiçoavam]. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.
E segue, por duzentas páginas, com espantosos, grotescos e engraçados relatos desse imaginário mundo livre da finitude humana. Consegue, ao vai da valsa da boa literatura, engendrar reflexões que repelimos ou costumamos evitar acerca do tempo de vida que cabe a cada um.
Em Todos os Homens são Mortais (1946), Simone de Beauvoir (1908-1986) narra as peripécias de Fosca, um conde do século XIII que não morre e, portanto, não consegue se situar em um mundo de efemeridades e de consciências moldadas por esta condição. Diferentemente de Saramago, tem-se, neste caso, não todos os homens imunes ao falecimento, mas somente Fosca. O estranhamento diante do que seria a imortalidade é, na francesa, bem maior do que no autor português. Não só porque ela não escolheu o caminho da leveza como forma, para seu romance, mas por outras razões, entre elas o fato de as dores de Fosca, decorrentes de sua condição incomum, serem solitárias, enquanto que em Saramago todos os vivos estão juntos, impactados pela negativa da Morte de continuar atuando.
No célebre conto O Imortal (1949), sobre o antiquário Joseph Cartaphilus, Jorge Luis Borges (1899-1986) intromete-se na narrativa com uma frase que bem resume aonde Simone de Beauvoir quis chegar, ou nos conduzir, com seu romance de quase quatrocentas páginas: “Ser imortal é insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal.”
Duração – das coisas, da vida, das relações. Essa duração se mede por unidades de tempo. Só, somente só porque somos finitos, porque morremos, porque a recusa saramaguiana da Morte de ceifar vidas é apenas uma bela manifestação da criatividade, é que o tempo existe, ou é criado (Vá saber!).
Dias e noites se alternando; primaveras, verões, outonos e invernos se sucedendo, assim como luas novas, crescentes, cheias e minguantes -- seriam o quê, não fosse a finitude condição daqueles que presenciam essas passagens? Ou, de outro modo: não são essas passagens, essas sucessões de eventos, baseadas no movimento dos astros, uma engenhosa invenção para simplesmente monitorar a nossa condição de meros passageiros da nave Terra, fadados a desaparecer?
Por ser a nossa mais elementar condição, a finitude molda a nossa relação com os objetos, os eventos e os outros seres, pois nos obriga a lançar sobre nós mesmos com os outros, sobre o mundo e sobre os acontecimentos, a ideia de duração, já que nada é para sempre e já que só existe o que dura, por pouco que seja, ainda que seja na nossa imaginação. Somos, por essa via, constrangidos a medir o tempo passando, como se controlar seu “estoque” fosse vital.
Fôssemos imortais, o que para nós faz sentido como mortais perderia essa condição. E não sabemos, de fato temos dificuldade até para imaginar, o que então valeria a pena e poderia “preencher” uma existência interminável.
Nunca e para sempre são palavras que “nunca mais” poderiam ser ditas da maneira como, mortais, dizemos. A noção de tempo, uma vez imortais, perderia importância. Não haveria mais suicídios, homicídios, as guerras não seriam letal carnificina. Assim, qual passaria a ser a maldade extrema que alguém poderia impor a outrem? No lugar da pena de morte, a maior pena passaria a ser a prisão perpétua (que, razoavelmente falando, não existe para mortais). Lupicínio Rodrigues (1914-1974) não poderia mais cantar, sofrendo pela mulher que escolheu o outro:
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror Eu só sinto é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor,
porque no máximo teria desejo de dor.
Mas será que em tais condições não se inventaria algum tipo de morte – coisa como hibernação eterna – como fuga, como substituto próximo do falecimento? Não poderia isso ser desejado por alguém fortemente mutilado, fisicamente? Ou por alguém sem capacidade ou possibilidade de conseguir afetos? Ou por alguém incapaz de suportar o mundo?
Como se comportariam os que, aceitando a vida, teriam que sustentá-la: comer, beber, abrigar-se, ostentar? Uma vida infinita certamente é mais cara. Além disso, se as vidas são infinitas, cada nascimento se torna um ônus que jamais cessará, desse ponto de vista. Que mundo seria esse?
Amor eterno, ou menos – até que a morte separe os envolvidos – como ficaria? O medo da morte acabando, quais os medos que restariam? Que aconteceria com a crença em Deus, especialmente quando vinculada a uma ideia de vida após a morte?
A reflexão sobre a morte é, de fato, reflexão sobre a vida, conducente à valorização... da morte como condição da vida tal como conhecida, vivida desde sempre. Conduz, ademais, a uma pergunta-chave: Se é para durar, quanto convém que dure?
Graças às numerosas conquistas da inteligência em diversas áreas do conhecimento, somos, hoje, mais longevos do que em qualquer período da História. E isso não deixa de ter efeitos colaterais negativos. Há, por exemplo, uma propensão – estimulada na sociedade atual – de valorizar uma fase da vida, a juventude. Isso faz com que os velhos (que tenderão a ser cada vez mais numerosos) sejam e se sintam um tanto marginalizados (“Melhor idade”, hahahaha.), não poucos lançando mão de artifícios para parecerem ou se sentirem jovens, não raro resultando em cômicos desastres. Sem falar numa quase recusa à morte, que gera velhos moribundos muito duradouros, em leitos de hospitais ou sob medicações incapacitantes. Para desespero dos próximos, e alegria das indústrias da área da saúde, uma das maiores e mais rentáveis da economia contemporânea.
Convive mal o homem com a morte, e também com a velhice. Ou seja, não anda bem consigo mesmo e com a vida como ela é, do ponto de vista biológico. Não conviveria mal, também, por outro lado, com a imortalidade? Provavelmente sim!
Muitas perguntas, poucas respostas, uma certeza: a certeza da morte (em momento e circunstâncias incertos para cada um) define, limita e potencializa o que somos. Tudo o que somos, podemos e fazemos, somos, podemos e fazemos sob a “ameaça” da morte. É diante da morte que a vida se organiza e acontece. É o medo de morrer de fome que leva à produção de alimentos e, diante da indústria alimentícia sem limites para lucrar, é o medo de envenenamento que leva aos esforços de fiscalização sanitária e às prevenções contra conteúdos alimentares que adoecem. É o medo de morrer de frio, calor ou de efeitos das intempéries que conduz à construção de prédios (abrigos) e à fabricação de roupas. É o medo de morrer atacado pelo outro que gera a fabricação de armas e aparatos defensivos. É o medo de morrer por causa de acidentes e doenças que erigiu toda uma indústria de fármacos e de equipamentos hospitalares. A raiz mais profunda de todos os medos é a morte, por sua vez a raiz de grande parte dos fazeres humanos.
É nos seus fazeres, tentando fugir à morte, nisso sendo bem-sucedidos até certo ponto, que os homens deixam seus legados, sejam eles benéficos ou maléficos, pequenos (para uma pessoa, para uma família) ou grandes (para uma comunidade, uma Nação ou para a Humanidade). A dedicação a esses fazeres é um acerto, pois, como dizia Sêneca (????-65 d.C.), em carta a Lucílio, “Erramos ao esperar [ou ficar esperando] a morte, pois em grande medida ela já aconteceu. A morte é senhora de todos os anos que deixamos para trás”.
Artes de Tika Tiritilli e de Fábio "The Byrd"/Epiloges
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