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Foto do escritorValdemir Pires

11. Tempo futuro – os dinheiromantes (Tempo - Livro I)


Arte: Opulência, Valdemir Pires (colagem de recortes sobre papelão).


Como tempo que ainda não chegou e que trará o que ainda não se sabe, o futuro é campo fértil para todo tipo de especulação. Os exercícios para sua previsão marcam a História desde sempre, adivinhos, profetas, médiuns, oráculos e assemelhados às vezes influenciando decisivamente os poderosos e as multidões. Embora se afirme com frequência que “o futuro a Deus pertence”, rotulando-o de insondável, são incontáveis os registros históricos de figuras e instituições especializadas em prevê-lo ou antecipá-lo.

Um nome como o de Nostradamus (1503-1566) é bastante ilustrativo da permanência da crença de que o que virá já está escrito nas páginas do tempo, ou foi antecipado nas folhas de algum livro, como o bíblico Apocalipse, por exemplo. A divindade, dona do tempo, parece compartilhar, de modo enigmático, como lhe convém, por meio de artefatos e pessoas escolhidas, o que está por vir. E caso não o faça, haverá sempre um ou outro capaz de sondar os traços do amanhã: estão aí os astrólogos para comprovar, com os horóscopos diariamente consultados por gente de todo as classes sociais, religiões e nível de formação. A demanda por saber antecipadamente se a felicidade chegará, se o amor será correspondido, se uma herança será recebida etc. nunca vai acabar, assegurando freguesia permanente para cartomantes, quiromantes, lançadores de búzios e manejadores de realejos.

Os menos vulneráveis às crenças e crendices afirmam que todo esforço e parafernália para antecipar o que pode acontecer depois do presente não passa de uma forma ilusória de defesa contra o medo do futuro, cujos eventos são incontroláveis e carregam em si o potencial de catástrofe. O medo da fome, da doença, da solidão, do vexame, da morte e de outros infortúnios seria a explicação para as atitudes relacionadas ao sobrenatural e ao místico, chegando-se ao nível da institucionalização, com as seitas e religiões.

O medo do futuro, entretanto, parece não alcançar tão fortemente o curto prazo. O dia de amanhã, a semana e o mês que vêm têm semelhanças com o presente. É como se fossem um hoje estendido, dentro do qual o medo é relativamente controlado. Trata-se de um horizonte temporal sobre o qual se pode lançar um olhar que alcança. Tempo em que estaremos vivos e operantes, pois não nos ocorre morrer ou adoecer aqui, agora – somos dotados de um certo sentimento de invulnerabilidade, especialmente quando jovens. Sem esta couraça, talvez não conseguíssemos levar adiante a vida.

No longo prazo, por outro lado, “estaremos todos mortos”, assinalou John Maynard Keynes (1883-1946), o mais notável economista do século XX, para quem o dinheiro é o elo seguro entre o presente e o futuro. Como reserva de valor, estoque de poder de compra, a moeda oferece a certeza de acesso a bens e serviços no momento em que são ou vierem a ser necessários. É por isso que os indivíduos, segundo Keynes, têm “preferência pela liquidez”, ou seja, predileção por manter a carteira recheada de notas. É difícil arrancar-lhes uma moeda: exigem recompensa – um bem valioso em troca ou a devolução acrescida de juros.

Com dinheiro em mãos, o futuro é menos temível, portanto. Ele é um bom substituto de Deus, ou o contrário: a Deus se busca quando o dinheiro é escasso, porque, como biblicamente dito, Ele não negará ao homem de fé o sustento, pois nem às aves o nega. Goethe (1749-1832) certa vez disse “Quem não tem arte, que tenha religião”. Na mesma linha, é possível (se desejável, cabe a cada um decidir), pode-se parafraseá-lo a partir de Keynes: “Quem não tem dinheiro, que tenha Deus”.

O dinheiro é uma inteligentíssima criação humana, que carrega, não raro se diz, algo de demoníaco, que é necessário controlar, sob pena de o inferno transbordar para a vida coletiva. Primeiro, porque quem controla o futuro, pode controlar o presente. Poucos homens com muito dinheiro podem (efetivamente, mesmo que sob nome distinto) escravizar muitos homens com pouco dinheiro. Segundo, porque o dinheiro permite especular ou, no dizer de Keynes, alternar a posse de títulos (ações, debêntures, promissórias etc.) com a posse de dinheiro para, assim, ganhar com os movimentos de alta e baixa desses títulos, principalmente com as ações das empresas nas bolsas de valores. Uma vez contaminada fortemente pela especulação, as ondas de liquidez e iliquidez na economia (conforme os especuladores liberem dinheiro em troca de títulos ou vice-versa) fazem-na ir do boom (crescimento acelerado) à depressão (redução drástica do nível de atividade econômica), e vice-versa, em curtos intervalos de tempo.

Quem pode controlar o demoníaco dinheiro, como reserva de valor (que propicia a concentração de riqueza) e como instrumento de especulação (que provoca volatilidade no volume de dinheiro disponível na economia) para que a vida econômica não se torne um inferno? O Estado, somente ele, por meio das políticas monetária (principalmente), fiscal e cambial, dirá Keynes. Mas o Estado é outro demônio, dirão os liberais. Resulta, então, que dois demônios criados pelo homem, Dinheiro (ou Mercado, como se queira) e Estado (ou política), terão que se enfrentar, diariamente, na disputa pela definição do que será o futuro, como sucessão de períodos de curto prazo, em torno do qual ser formam, no presente, as expectativas definidoras do nível de atividade e emprego e do valor da moeda (que pode ser corroída pela inflação).

Expectativa é um conceito-chave do pensamento keynesiano, revelando que sua reflexão econômica tem por objeto, fundamentalmente, o manejo do futuro, para que fique assegurada a sobrevivência tanto dos indivíduos e organizações, como, de resto, do que Karl Marx (1818-1883) chama de “modo de produção capitalista”. O lorde inglês estava preocupado com as consequências desestabilizadoras que o comportamento individual especulativo, aproveitando-se das vicissitudes da moeda, traz para o processo econômico. Esse comportamento, se controlado, é benéfico por várias razões (reparte riscos, azeita a oferta e demanda por moeda etc.). Enquanto “bolhinhas no aquário”, oxigena-o; mas, quando se torna uma bolha do tamanho do aquário, o destrói.

Como se formam as expectativas? Na resposta a esta pergunta, Keynes revela o gênio que é, não só em assuntos econômicos, mas em assuntos da vida, em geral. As expectativas se formam com base nos “juízos convencionais”, pontificará ele. Estes juízos são as leituras que os indivíduos fazem de como será o incerto amanhã. Concentram-se na avaliação acerca da valorização ou desvalorização dos ativos (reais e monetários) no conjunto da economia, procurando garantir para si, amanhã, mais riqueza do que detêm hoje; isso por meio da aquisição e da venda (conforme a conveniência iluminada pelas expectativas) de ativos: compram ações que avaliam propensas a valorizar e se desfazem das que acham que vão se desvalorizar – procuram ganhar dinheiro com a movimentação do dinheiro, simplesmente (ou seja, especulando).

Especular é, como se vê, correr riscos severos: pode-se ganhar muito, assim como perder tudo. Trata-se de apostar, como num jogo. A economia é um cassino, para o especulador. Quem ganha este tipo de jogo? Quem sabe o que vai acontecer amanhã? Não, claro, ninguém sabe. Ganha quem é capaz de ler acertadamente os juízos convencionais, quem sabe, em outras palavras, ler com eficácia o que a maioria dos jogadores está pensando que será o amanhã – ganham os dinheiromantes. Em função do que acham que acontecerá amanhã (tal ação vai valorizar), os especuladores fazem suas apostas hoje (compram a ação com potencial de valorização) e, por essa via, determinam o amanhã: a demanda elevada pela ação a faz, de fato, se valorizar; esgotado este potencial, o especulador vende-as, realizando o lucro. A chamada profecia auto-realizada.

Assim, vamos jogando, nos distraindo, levando a vida em meio às contradições, conflitos, injustiças etc. Alguns sabendo o que está acontecendo, a maioria simplesmente seguindo o fluxo, alegre ou triste. Estado (poder, política) e mercado (riqueza, dinheiro) cumprindo seus respectivos papéis, como se não fossem grupos de homens decidindo e agindo, como se fossem entidades supra-humanas.

Assim vamos vivendo, nos limitando a pensar no amanhã como curto prazo. No longo prazo, não só cada um de nós estará morto: dependendo da extensão do prazo a que nos referimos, até o Sol deixará de existir (como a Física vem teorizando) e, junto, evidentemente, o planeta em que vivemos -- a Humanidade inteira cumprirá o desígnio bíblico – ao pó retornará, cinzas. O futuro, no limite em direção ao infinito, é o Nada. Mas isso pode ser antecipado, caso 1. o comportamento econômico extremamente consumista e exploratório dos homens chegue a destruir a natureza, inviabilizando a vida na Terra ou 2. os conflitos de interesse cheguem ao ponto em que uma bomba atômica ponha fim à experiência humana.

Não é absurda a afirmativa de que a espécie humana poderá desaparecer antes que o sistema solar colapse (daqui a milhões de anos). Isso porque há uma forte tendência para isso na esteira acionada pela atual ganância financeira, orientada pelos limitados dinheiromantes (leia-se economistas de mercado), que olham para a carteira sem atentar para o ecossistema e para os seres humanos, sem atentar para o fato de que o futuro espera na esquina, mas ele pode ser ali mesmo assassinado, sem que possa aguardar por nós em outra cidade, como Utopia, por exemplo.


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