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  • Foto do escritorValdemir Pires

4. Tempo, luz e escuridão (Tempo - Livro I)

Atualizado: 14 de mai. de 2021


Arte 1: Interpretação do fragmento por Romualdo Sarcedo (Roma), ator piracicabano, que mantém no YouTube o canal Viva Poesia. Veja também a participação dele no Teia19 (Partir). Apoie este artista clicando aqui.


Deveríamos nos lembrar todos os dias da nossa condição de seres cósmicos, para além da nossa condição de animais sociais e da nossa condenação a cumpridores de funções profissionais. Antes de fagulhas do universo, somos filhos do Sol. Nascemos num dia e em outro morremos. No intervalo, vivemos uns 28.000 dias, quando muito, cada qual dividido entre dia e noite. Nossa existência pessoal abarca, então, 14.000 dias e 14.000 noites, o que resulta em 168.000 horas sob luz solar e igual tanto em meio à escuridão da noite. Na maioria das noites a luz da lua (ou melhor, a luz que parece dela emanar) não nos deixa esquecer que o Sol continua emitindo seus raios do outro lado do planeta redondo.

Costumamos nos considerar seres da luz. E estamos corretos nessa consideração, pois sem o Sol não existiríamos. Por outro lado, metade da nossa existência transcorre sob a escuridão, algo que preferimos não salientar. E também algo de que procuramos fugir, em parte conseguindo: Thomas Alva Edson (1847-1931), plagiando Deus, um dia disse “Faça-se a luz!” e a luz se fez, para nossa alegria e muito mais para a dele, que enriqueceu como poucos por este feito, enquanto toda uma indústria da iluminação pré-elétrica foi varrida do mapa.

Com toda ciência que já praticamos e toda tecnologia que desenvolvemos, até aqui, domamos as forças da natureza, transformamos o planeta e já nos lançamos pra fora dele, mas nossas respostas científicas para as perguntas “Por que dormimos?” e “Por que sonhamos quando dormimos?” não são muito melhores do que as dos feiticeiros, bem mais agradáveis de ouvir, aliás.

Do dar-se e negar-se do Sol, para nós, por causa dos giros da laranja sideral (sobre a qual aderimos feito lagartixas) sobre seu próprio eixo, emana uma imposição, lá de cima, de bem longe, que nos coloca na horizontal todo santo dia, fechando os olhos e liberando as pupilas para olhar para dentro, em busca de fantasmas. É raro, entretanto, que estranhemos a compulsoriedade de viver alternando entre vigília (normalmente diurna) e sono (normalmente noturno) – afinal, que raios são esses, tão difíceis de romper? E dessa normalidade, determinada pelo céu, passamos à normalização de obrigações socialmente impostas, como se partissem das mesmas fontes onipotentes: trabalhamos de dia e fazemos amor à noite; se alguém está ao léu à tarde, pode cair em desgraça, passando por vagabundo; se outro sai para passear na madrugada, será abordado pelo policial; durante o dia, todo barulho pode e à noite, o silêncio obrigatório…

O tempo, para nós, é como uma infinita sequência de acende-apaga, durante a qual participamos por umas 14.000 vezes (se tanto), por causa de evoluções de minúsculos astros que, para nossas dimensões corporais, são extremamente grandes, incomensuráveis. Mas não vemos assim, na nossa lida diária, em busca da glória ou na simples (embora dura) luta pela sobrevivência: fantasiamos transcendentalidades, metafísicas e missões, sentindo-nos estrelas daqui de baixo, de brilho eterno – coisa, aliás, inacessível para todo e qualquer corpo brilhante do firmamento e de além dele.

Quando vemos um cometa, ficamos maravilhados, como se mais maravilhoso não fosse ficar aqui, num cantinho, sem cair nem queimar, enquanto tudo, ao redor, está explodindo ou derretendo. E, por aqui, vamos brincando com fogo, desde espoletas e cartuchos com pólvora até bombas de hidrogênio: quem sabe um dia não conseguimos antecipar o que os anos-luz futuros nos reservam – a explosão final do Sol?

Nem é o caso, diante disso que vamos nos tornando, de lembrar o calor que não vem do fogo, mas de dentro de nós: a capacidade de amar. Parece que ela está sendo engolida por uma noite profunda, sem luar, assombrada por equações e máquinas portadoras de inteligência artificial, desprovidas, como sempre serão, de qualquer sensibilidade (nisso, aliás, muito semelhantes a um expressivo conjunto de seres humanos: sociopatas incorrigíveis em busca, unicamente, de produtividade e acumulação, às custas de tanta miséria que dá um dó maior do que a Via Láctea).

Aurora, por que nos abandonaste?








Arte 2, aquarela sobre papel, sem título, da artista plástica Érika Finati: "Para ilustrar o capítulo “Tempo, luz e escuridão”, busquei fazer uma trabalho que remetesse ao tempo, à noite e ao dia. Na imagem, o símbolo marrom faz referência a uma pintura rupestre da região de Central, na Bahia, que, segundo estudos1,2, seria um calendário solar; já o símbolo laranja, presente na mesma região, seria um calendário lunar. Dessa forma, busquei representar elementos que tratam do dia e da noite, do Sol e da Lua, e da contagem do tempo. Também considero que as pinturas rupestres, por si só, indicam a passagem do tempo e a “permanência passageira” do ser humano no tempo. Neste trabalho, na sua maioria, as cores são semelhantes a cores que foram usadas em pinturas rupestres."

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1 JALLES, Cíntia. As representações astronômicas no de natura rerum e nos painéis rupestres das populações ágrafas brasileiras, trabalho apresentado no XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis, 2005.

2 Astronomia indígena: índios brasileiros observavam astros e conheciam ciclos celestes. UOL Educação, abr. 2012.


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