Arte: Foto de Oswaldo Gonçalves Júnior.
“Águas passadas não movem moinhos” é um dito que não há avô que não tenha legado ao neto, que, por sua vez, o revela aos outros, com muito orgulho, sempre que precisa aconselhar a que se dê mais atenção ao que está por vir do que àquilo que já aconteceu. É um dito verdadeiro, fisicamente falando, mas que esconde o fato de que águas passadas moveram moinhos anteriores, que, por sua vez, garantiram a farinha de que se alimentaram os construtores dos moinhos atuais. Assim, também é certo dizer que “A mó que hoje mói deve à mó que ontem moeu”: águas presentes também não movem moinhos, se estes não foram construídos.
“O passado importa” é uma expressão que resultará na influente ideia de path dependency (algo como dependência da trajetória já percorrida), cara aos neoinstitucionalistas[1] que pontificam nas ciências sociais, em geral, e na economia, em particular, contribuindo sobremaneira para se entender os processos de mudança social e as inovações (tecnológicas, institucionais, econômicas e sociais). O presente, nesta abordagem, é, em grande medida, como que resultado de semeaduras anteriores: no passado, hábitos, regras, atitudes tacitamente esperadas e normas estabelecidas consagraram vontades e visões que terminam sendo observadas e obedecidas até hoje, nas relações do dia-a-dia, com parco questionamento – as mudanças, paulatinas, ocorrem a partir desse caminho já andado, raramente ocorrendo rupturas bruscas ou revoluções; o modo de produzir é baseado num padrão tido como ótimo e amplamente aceito, ocorrendo a inovação tecnológica em torno dele, revolução schumpteriana (mudança radical de paradigma) marcando apenas raros momentos de profundos avanços no conhecimento e nas relações econômicas e sociais. Assim caminha a humanidade: em geral trotando; de vez em quando, apenas, galopando; quase nunca em disparada descontrolada.
Mas, a rapidez com que as novas tecnologias estão possibilitando (senão impondo), atualmente, mudanças nos padrões de produção e consumo, com forte impacto na vida quotidiana, na cultura, na política etc., tem, por assim dizer, encurtado o passado. Por exemplo: entre ouvir música cantada e executada pelos cantores e músicos, presencialmente, no local do evento, e fazer isso utilizando um gramofone, em casa, transcorreram séculos. Do gramofone aos já descartados toca-discos e gira-cassetes foram décadas. Depois, não muito mais tarde, vieram os CDs e DVDs, que distam poucos anos do streaming (forma de distribuição digital, em oposição à descarga de dados). Tecnologias podem, hoje, se tornar sucatas antes de amadurecerem. Ou seja, o passado que importa tem a ver com os últimos três, quatro anos, e não com a última ou penúltima década – onde, então, fica a dependência da trajetória já percorrida? O passado é, agora, um quase-presente, no âmbito da produção econômica!
Se no modo de fazer coisas, produzir bens materiais, avança-se tão rapidamente, em tão pouco tempo, o mesmo não se dá no que tange ao ritmo com que as relações entre os indivíduos podem se modificar. Resulta dessa contradição latente um caos afetivo, uma desorganização da vida em sociedade, um processo devastador de mudanças, a partir das relações de produção e de consumo, que obriga a que um mesmo indivíduo torne-se vários “eus” ao longo de sua existência. Na modernidade líquida tão bem retratada por Zygmunt Bauman (1925-2017), os verbos mobilizadores são mudar, inovar, empreender, ressignificar (ou perecer), como se uma única pessoa pudesse comportar tantas metamorfoses ao longo de sua curta existência. Quando se está chegando a um ponto, é em outro, lá na frente, que se deve estar... Quem aguenta isso? Alguém algum dia aguentará? E se aguentar, valerá a pena? Vale a pena ter atrás de si não um passado (no qual se constrói uma trajetória – profissional, intelectual, afetiva etc.) com que se identificar, mas sucessões de pequenos passados, pontilhados por “eus” ciganos?
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, dizia o maluco beleza, não é? Mas os tempos eram outros, assim como a maluquice. Raul Seixas (1945-1989) segue tendo razão, entretanto, quanto à “velha opinião formada sobre tudo”, pois estava atacando o tradicionalismo, esse monstro político que ronda nossos dias. Essa atitude de valorizar o passado em detrimento do presente, o estabelecido contra o que está em gestação, que desemboca no conservadorismo, quando não no reacionarismo, é a pior possível num contexto de mudanças rápidas e generalizadas: aglutina os medrosos e os vencidos em busca de um passado que não voltará e que também não era melhor, necessariamente; e o faz, geralmente, em torno de lideranças que pensam ser, com seu autoritarismo e intolerância à flor da pele, os salvadores da moral, dos bons costumes e daquela vida que antes levava o “homem de bem”, quietinho no seu canto, feliz com sua ignorância e sua fé inabalável na divindade, comprada em suaves prestações, pagas ao tangedor de ovelhas.
[1] A respeito, ver a didática exposição encontrada em “As três versões do neoinstitucionalismo”, de Peter A. Hall e Rosemary C. R. Taylor (2003), disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n58/a10n58 .
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