Arte: Foto de Manuel Reis.
“Nunca podemos nos evadir do aqui e do agora”, diz a personagem do conto Utopia de um homem que está cansado (1975), de Jorge Luis Borges (1899-1986). Ao passado, não voltamos; ao futuro, não iremos, a não ser quando ele já tiver sido engolido pelo presente, presente que é, por isso, como uma prisão, de que não se escapa a não ser deixando de existir.
Mas milita em nossas almas a esperança: haverá um amanhã, que será o novo hoje; o hoje se renovará, sem cessar, até que cesse de fazê-lo. Se assim é, a prisão do hoje não é tão fechada como pode parecer: há nela uma fresta, por onde entra a luz do amanhã, capaz de corroer, até à eliminação, a parede da prisão – para que... entremos na cela seguinte.
A masmorra do presente é, todavia, o nosso espaço de possibilidades, pois é dentro dela que lançamos as condições para que o presente seguinte (enquanto ainda futuro) venha a ser uma cela diferente da anterior, quiçá melhor, menos restritiva. Apesar de constrangidos a viver no presente, nos projetamos no futuro, utopias e sonhos a alicerçar tudo que se decida e se faça hoje. Por menores que sejam esses sonhos (beirando à necessidade): ter o que comer amanhã, por exemplo. Avaliando nossos limites e potencialidades, e as circunstâncias em que nos movemos (o mundo, os outros), podemos sonhar em comer mais e melhor, por exemplo, ou em ir além de comer – cantar, dançar, lutar por um mundo melhor, seja o que for – concebendo a prisão seguinte como algo ampliado, mais iluminado, uma quase-não-prisão.
Uma cela solitária é um espaço a um passo da morte de seu habitante. É uma tortura que, repetida seguidas vezes, será letal. Por isso, é e deve ser, evitada. Assim, a prisão em que consiste o presente, que habitamos, é compartilhada, como regra. Não só estamos condenados a abrir mão de outro tempo que não o ora acessível (o presente), como dificilmente podemos dele retirar os que estão conosco na cela. Nosso presente é povoado, nele vivemos com outros, desejáveis e indesejáveis. E é com eles que tentamos urdir (bem-sucedidos ou fracassados) a “fuga” para uma cela preferível à atual, um futuro melhor. É arte de difícil domínio esse urdir sem trégua, principalmente porque o desenho do que seja uma cela melhor, um amanhã mais radiante, é um esforço que envolve o outro, com suas necessidades e desejos, diferentes dos nossos.
Assim como numa prisão física, na prisão cronológica (o presente) as companhias fazem diferença. De repente, uma festa pode eclodir entre os reclusos! E ela pode decorrer simplesmente do fato de terem eles conseguido se irmanar na busca de um amanhã com alegrias cujas feições conseguiram desenhar juntos, hoje. Assim como pode acontecer o contrário: uma rebelião com enfrentamento entre facções rivais, transformando o hoje no purgatório que precede o inferno de amanhã.
A dimensão projeto (futuro) do homem convive com sua dimensão atual (hoje). Escolher a que terá a supremacia na lida com a vida é outra arte (que se junta à de saber conviver), que consiste em combinar o sorver (o que se dá agora) com o expectar (o que se deseja que se dê em seguida). O ser-projeto deve lançar sombra sobre o ser-atual, mas não tão grandes e densas que o obscureçam em demasia. Não se trata de, como Alexandre Magno (356-323 a.C.), viver em função da glória, que se planta com o sacrifício de hoje, aceitando até a morte a troco dela; tampouco de, como Sardanápalo (século VII a.C), assim pensar e agir de acordo: “come, bebe e faz amor, pois outras coisas humanas não valem isto."
Fora desse equilíbrio, entre Alexandre (ser grande e pagar o preço) e Sardanápalo (sorver gratuitamente as delícias propiciadas pela pequenez) pode-se viver o hoje fulgurantemente (e não mediocremente), com o máximo de virtude ou com o máximo de vício, à escolha. Nessas opções radicais, porém, é que está em jogo a continuidade (mais barata) ou a mudança (mais cara). O herói buscará a glória do inovador e saberá que o fogo que levanta as labaredas e iluminam sua epopeia é o mesmo de que emana o calor que o irá incinerar; a luz, entretanto, será tanta que permitirá ver os seus feitos para além de seu tempo. Já o acomodado, tantas vezes também covarde, é o que se deleitará em permanecer hoje e amanhã na escuridão da caverna, desde que com acesso ao que satisfaça as necessidades e prazeres imediatos.
Em Alexandre, o desejo de superação; em Sardanáplo, a satisfação com a manutenção do status quo. Em ambos, diferentes escolhas pelo destino a dar ao hoje, ao tempo presente; diferentes formas de conviver (aceitando ou querendo suplantar) com a inexorável condição humana de ser aqui e agora, mesmo podendo vislumbrar o lá, depois.
Arte de Manuel Reis
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