Imagem: Valdemir Pires, colagem de recortes sobre papelão, 2020.
Somos, no mais profundo da nossa essência, sonhadores; somos inquietos: sempre queremos mais, almejamos com frequência o impossível. Por isso nos tornamos capazes de, como as criaturas da água, sobreviver no interior das profundezas líquidas; como as criaturas do ar, planar e voar; enquanto criaturas da terra, nos locomovemos das mais distintas maneiras, à velocidade que desejarmos; conseguimos, ao nos locomover, a façanha de fazê-lo mais rápido do que o som. Tudo isso porque sonhamos, longe, alto, profundamente.
Há pouquíssimos anos, falávamos uns com os outros ao telefone (superando correios e telégrafos, de que ainda conhecemos resquícios) e já era uma maravilha, à qual se juntou o finado fax, que permitia a mágica de um documento, de um lado da linha, se materializar do outro lado, qualquer que fosse a distância entre elas – uma espécie de teletransporte, pois. O sonho de hoje é fazer com nossos corpos o que o fax fez com os papéis, mas com um aperfeiçoamento: o “material” chegar ao outro lado sendo o original e não fac-símile, mera cópia. Porque nossas imagens, já as fazemos viajar de um canto a outro; o telefone móvel trouxe do universo ficcional para a realidade a conversa concomitante com as imagens dos que dialogam, e, mais do que isso, já nos tornou seres plena e permanentemente conectados para fins comunicacionais.
O que ontem mesmo era sonho nos campos dos transportes e das comunicações, como também no do armazenamento e acesso de informações, já é realidade, hoje, acontecimentos de algum modo “profetizados” pela literatura e pelo cinema de ficção científica.
Quanto ao teletransporte (deslocamentos entre espaços), continua restrito ao mundo da imaginação (inseminada pela literatura e pelo cinema, esses modos de sonhar que atingem o imaginário coletivo com sua força sugestiva). Assim também a viagem no tempo – deslocamento de volta ao passado e rumo ao futuro. Mas, como do tempo e do espaço (separados entre si) fomos, com a teoria da relatividade, à quarta dimensão, chamada espaço-tempo (ambos imbricados entre si), teoricamente ir e vir entre passado-presente-futuro é uma possibilidade. Quando, viajando a velocidades próximas à da luz, um astronauta vai da Terra a algum ponto no espaço sideral, ele viaja no tempo: ao ir, terá atingido o futuro e, ao regressar, terá retornado ao passado (estará mais novo do que aqueles que aqui permaneceram). Mas isso, de certo modo, é uma abstração matemática, um modo de fazer cálculos e racionalizar os fatos, manipulando as equações da teoria da relatividade, em que pese experiência empírica já realizada, com cronômetro absurdamente bem calibrado, demonstrando que, da fato, o tempo se altera numa viagem espacial a velocidades próximas à da luz. Em que pese, ainda, experimentos recentes terem “invertido a seta do tempo”. Nesses experimentos foi contestada, em nível quântico, a conhecida segunda lei da termodinâmica, que diz que objetos quentes perdem o aquecimento na medida em que a energia se transforma e se dispersa no ambiente: o quente esfria, naturalmente, ou seja, o futuro do quente é o frio; fazer com que o frio volte a ser quente, sem aquecimento adicional, é inverter a seta do tempo – é isso que em 2019 uma equipe de cientistas (entre os quais Gordey Lesovik, do Instituto de Física e Tecnologia de Moscou) diz ter feito.
O que sonhamos hoje é infinitamente mais do que já tem sido feito experimentalmente. É, de posse de nossos corpos, regressar ao passado ou nos alçarmos ao futuro, enfim, navegar, ao nosso bel prazer, no rio Jáfoi ou no mar Aindanão. No cinema já fazemos isso, usando ou não recursos tecnológicos do tipo ficção científica, desde, ao menos, os anos 1960. São alguns dos muitos exemplos, com diferentes abordagens e estilos, em ordem que vai do presente ao passado, os filmes “A gente se vê ontem” (2019), “A caverna” (2017), “A chegada” (2016), “Interestelar” (2014), “Questão de tempo” (2013), “Looper: assassinos do futuro” (2012), “O homem do futuro” (Brasil, 2011), “Primer” (2004), “Efeito borboleta” (2004), “Kate e Leopoldo” (2001), “Doze macacos” (1996), “Timecop” (1994), a trilogia “De volta para o futuro (1985), “ O exterminador do futuro” (1984), “Em algum lugar do passado” (1980), “Um século em 43 minutos” (1979), “La jetée” (1962), “A máquina do tempo” (1960, baseado no livro homônimo deH. G. Wells – 1866-1946). Na TV, brilhou por muito tempo o seriado de Irwin Allen (1916-1991), “Túnel do tempo” (1966-67), talvez o que mais impacto teve sobre toda uma geração, no Brasil, juntamente com o “Planeta dos macacos”, várias vezes ressuscitado, desde o livro de Pierre Boulle (1912-1994), “La Planète des Singes” (1963). Na TV do futuro (que é hoje, quando não mais dependemos de emissoras e utilizamos streamings), foi recebida com encanto e perplexidade a série alemã da Netiflix “Dark” (2019), que explora a ideia de universos paralelos, cada qual com seu próprio tempo, comunicando-se entre si.
Também na literatura (às vezes adaptada para o cinema), circular livremente entre o passado, o futuro e o presente é “uma realidade”. Nesta, a chamada manipulação temporal é relativamente fácil, já que ali o homem-Criador (o autor) tudo pode (inclusive sem as dificuldades que existem no cinema, pela exigência, neste, de imagens “visuais” e não apenas “mentais”), como, por exemplo em “Matadouro 5” (1969), de Kurt Vonnegut (1922-2007), que assim começa: “Escutem. Billy Pilgrim se perdeu no tempo.” E, em dado momento, descreve um retorno no tempo que parece um filme sendo rodado na direção contrária:
Aviões americanos, cheios de buracos e homens feridos e mortos, decolaram para trás de uma pista na Inglaterra. Acima da França, aviões alemães voaram para trás em direção a eles e sugaram balas e estilhaços de aviões e homens. Fizeram o mesmo com os bombardeiros americanos no solo, e esses aviões subiram, indo para trás até juntarem-se à formação.
Outro exemplo é “A seta do tempo” (1991), de Martin Amis (1949-), em que a vida de um criminoso de guerra é contada de trás para a frente, da morte ao nascimento.
Os dois exemplos citados são recentes, guardando boa distância temporal entre si. Foram escolhidos por isso. Mas eles são numerosos na literatura, desde o seu surgimento. Por exemplo, José Luis Borges (1899-1986) é o mestre dos contos que manipulam o tempo e nos espantam com isso; e Marcel Proust (1871-1922) intentou, nas 3.500 páginas das obras que compõem a colossal obra “Em busca do tempo perdido” (1913, 1919, 1920-21, 19121-22, 1923, 1927), atingir a “substância do tempo”, para dela escapar por meio da escrita que dialoga com o inconsciente.
Se na Física ainda patinamos e escorregamos no esforço de viajar no tempo, na Literatura, como no cinema (neste com um pouco menos liberdade), “nadamos de braçada”. A Literatura é o campo do conhecimento que nos permite viajar no tempo e no espaço sem sair da poltrona. E a viagem que proporciona não se limita à permitida pelo tempo-relógio ou calendário, compartimentado entre passado-presente-futuro.
É porque temos espírito (mais do que apenas razão) que sonhamos e assim viajamos sem conhecer ou respeitar fronteiras espaciais e cronológicas. E nesse sonhar, vamos, aos poucos, transformando os sonhos em realidade, injetando coisas do espírito no quotidiano da carne, que “ainda”, infeliz ou felizmente, não conseguiu fugir às limitações do espaço e do tempo.
Arte de Valdemir Pires
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