Arte: Foto de Flávia Duque Brasil (Porta de Santa Maria dos Anjos Mártires, Roma).
Há vida depois da morte? Desde quando começamos a nos fazer esta pergunta? O que a motivou? Por que a maioria de nós insiste em crer que sim, imaginando uma pós-morte potencialmente melhor que a vida atual?
Não é possível responder a essas questões de modo absolutamente convincente, aceito por todos. O melhor a fazer, talvez, seja abordar o tema lançando outra pergunta: o que é “vida”?
Mesmo respeitando e admirando as possíveis respostas que rejeitam o raciocínio convencional, materialista (por estes enriquecerem o que a vida humana tem sido), a solução que parte da constatação de que a vida acontece em corpos tem que ser considerada na elucidação do enigma proposto. Não é à toa que este fato é básico no que denominamos biologia, do grego: estudo da vida.
Vida é aquilo que existe em corpos que nascem, crescem e morrem. Ou seja, um pressuposto para entender o que é vida é concebê-la, primeiro, como gerada (nasce) e, segundo, como perecível (morre) – começa e termina, tem duração, não resiste ao passar do tempo, não é, portanto, eterna. A tulipa, a gata e a Fernanda Montenegro são belas formas de vida, inacessível ao diamante que, nisso, é menos que a formiga.
Uma vida não gerada é, para nós, uma incógnita. Tanto que nos perguntamos de onde surgiram os primeiros exemplares de cada forma de vida, havendo respostas criacionistas e evolucionistas em conflito, há muito, colocando em dúvida a existência ou não de um deus, responsável pelos inícios, nas cosmogonias. Tudo que é vivo, para nós, vem de sêmen ou semente, tem ponto de partida.
Vida eterna é algo que desconhecemos materialmente, até porque o próprio duríssimo diamante é efêmero diante do tempo infinito. Que triste: mesmo sem ter algum dia sido vivo, um dia, também “morre”...
Então, vida é intervalo, intervalo entre nascer e morrer, brotar e murchar, até secar totalmente, regressar ao pó. Vida é, portanto, manifestação no tempo. E como ocorre em um corpo, é também manifestação no espaço.
Bem, se vida é isso, não pode suplantar a morte. Não há vida, “biológica”, depois da morte, o corpo não é carregado para outra dimensão, onde continua com sua estrutura e metabolismo. Isso não acontece com a tulipa nem com a gata. Por que haveria de acontecer com a Fernanda Montenegro?
Mas, dirão, o corpo humano tem alma! Por isso se trata de um corpo especial, superior. Há controvérsias. Pode ser que o que o anime – e isso é o mais constatável – sejam os impulsos elétricos do cérebro, parte do próprio corpo, com ele desaparecendo por ocasião da morte.
O que chamamos alma talvez seja uma figura de linguagem nobre para algo claramente material: energia se convertendo em pulsação, canalizada para ações, graças à forma como os corpos dos animais estão estruturados e funcionam. A vida animal (a partir deste ponto é preciso abandonar a vegetal), então, levando-se isso em consideração, deixa de ser apenas o que ocorre entre o nascer e o morrer, passando a ser algo mais específico: energia em movimento nos corpos com cérebros (que não se pode dizer, exatamente, que os insetos possuam), entre o nascer e o morrer.
Vida é corpo no espaço, ao longo de um período de tempo, com energia pulsante que se converte em ações de autopreservação e reprodução. Como a da gata.
Mas a vida da Fernanda Montenegro é mais do que a vida da gata. Fernanda Montenegro é corpo no espaço, no tempo, pulsante, como a gata. Bela de modo distinto daquele da gata. Mas a diferença fundamental não reside aí: a Fernanda é consciência, é vida que reflete sobre si mesma; vida que imagina e cria, assim como todos nós, com maior ou menor intensidade.
Vida humana: corpo no espaço, com certa permanência temporal (duração), pulsando graças à energia, pensando e imaginando e criando e, portanto, construindo um mundo conforme os próprios desígnios, desafiando o mundo natural em que está inserido. Assim concebia, cessa com a morte, não pode ser eterna.
Ainda que algo exista após a morte do corpo humano, duvidoso que possa ser a reconstituição da experiência terrena. Os materiais do corpo se convertem em outros, a energia cessa, com a morte. Não se reconstituem tal como antes. E ainda que isso acontecesse, seria possível que resgatasse em si a memória de uma vida anterior, o “eu” continuando o mesmo?
Mistérios, mistérios! Não sabemos bem sequer o que sejam espaço, tempo, energia e consciência; é insuficiente, pois, o que podemos dizer sobre a vida humana, que é isso tudo, junto e misturado, e talvez algo mais, pois essa vida não é viável, muito menos desejável, sem os afetos, que nos unem e possibilitam nossa perpetuação, enquanto espécie. Talvez seja o caso de refletir sobre a eternidade depois de entender melhor nossa perecibilidade, tornando-a menos aflitiva no interior de nosso tempo histórico.
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